Tango


© Aldo Sessa





A Le Clézio
a quem devo este poema



     O poema, - que licor venenoso de quimeras,
de espectros, e utopia,
                                palavras volantes, levemente 
ditas, preditas mais palavras, e tantos
muros: - quantas pedras, 
            cada vez mais poemas sempre nos livros,

fileiras de linhas, frases cortadas, em suspenso,
 
e tantas sentenças, 
quase asfixiamos, e névoas acumulam 
                as faces sem outra memória.

O poema aclamou o horror do escriba, libertou 
o trovão na música,
         foi assim que despertou o primeiro poema, 

   dos cânticos em chama no mar, nas ervas, nas 
praças de amplas cidades 
                                 e pistas de dança,
 em roteiros de prédios, em fossos de multidões. 

Haverá ainda essas
   palavras que nada exigem, que não dominam, 

as que nos ensinam
a língua antiga, a língua mágica, a mais remota 
de qualquer língua, mais do que

a língua dos  homens e do comércio, 
               a língua do poder 

        e nessa dança de pedra, êxtase, 
    esse poema magnificamente autónomo, 

todo o poema 

que nunca foi escrito - 
         ali sobre a página por acidente, 
 cresce em árvores, terra renascida, pele 
perfurada, rúbia 

  pele a moldar o rosto e a mudar o nome, 
                sem normatividade no falar, que
          a língua do poema é nada dizer,
tudo recordar,

a música nítida, 

  o tango que enlouquece os acrobatas - 
fascínio hipnótico
em espelhos brancos -
a carne toda, o sangue, a sala a gotejar:

    o tango é sabor a poemas que pressentem 
violentamente 
em seus braços que corpos enchem o espaço
     como astros 

           mutáveis, híbridos de morte e de vida;

o poema despede-se de súbito
Vem hoje e sem destino parte. 
                  Que poeta-deus sangra no poema? 
Tem nome, morada, endereço postal? 
Que nada mais que fulgores de
silêncio encarnam
                                a dicção da palavra




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Poema inspirado em Vers Les Icebergs, Iniji, Le Clézio, 2014. 
Tradução de Herberto Helder, As Magias, Poesia Toda, 1996.