Tango
Para Le Clézio
a quem devo este poema
a quem devo este poema
O poema, - um licor venenoso de quimeras,
de espectros, e utopia,
palavras volantes, levemente
ditas, preditas, mais palavras, e tantos
muros: - quantas pedras,
cada vez
mais poemas sempre nos livros,
fileiras de linhas, frases cortadas, em suspenso,
fileiras de linhas, frases cortadas, em suspenso,
e tantas sentenças,
quase asfixiamos, e o ar acumula
as faces sem outra memória.
O poema aclamou o horror do escriba,
libertou
o trovão na música,
foi assim que despertou o primeiro poema,
de cânticos no mar em chamas, nas ervas, nas
praças de
amplas cidades
e pistas de dança,
roteiros de prédios, fossos de
multidões.
Haverá ainda essas
palavras que nada exigem, que
não dominam,
as que nos ensinam
a
língua antiga, a língua mágica, a mais remota
de qualquer língua, mais do que
a língua dos homens e do comércio,
a língua do
poder
essa outra língua, essa dança de pedra, êxtase,
esse poema magnificamente
autónomo,
todo o poema
ali sobre a página por
acidente,
em árvores, terra renascida, pele
perfurada, rúbia
pele a
moldar o rosto e mudar o nome,
sem normatividade no falar, que
a língua do poema é nada
dizer,
tudo recordar -
A música nítida
do tango enlouquece os acrobatas -
do tango enlouquece os acrobatas -
fascínio hipnótico
de espelhos brancos -
a carne toda, o sangue, a sala a
gotejar:
o tango é sabor a
poemas que pressentem
violentamente
em seus braços que corpos enchem o espaço
como astros
mutáveis,
híbridos de morte e de vida;
e o poema despede-se de súbito.
Vem
hoje e sem destino parte.
POST SCRIPTUM
Que poeta-deus sangra no poema?
Tem nome,
morada, endereço postal?
Currente calamo é cavalo à solta - sonora
a intraduzível ordem do silêncio,
a palavra-vertigo do tango.
Copyright © Luísa Vinuesa. Todos os Direitos Reservados
Poema inspirado em Vers Les Icebergs, Iniji, Le Clézio, 2014.
Tradução de Herberto Helder, As Magias, Poesia Toda, 1996.