A construção das coisas


© Michael Kenna



Atiras o rosto contra o lume como se de um
exercício se tratasse, essa longa crispação 
em chamas, o odor inefável
do perigo, a tentativa efémera de 
abandonar a fronte

sobre o ferro. Amadurecem gotas de água sobre
a estátua, os rios multiplicam o oceano, os cães 
ladram à lua caindo sob

a sorte das casas. Tão vago é o labirinto do acaso, 
tão curto é o vento sob os passos que adormecem 
o eco entre as casas, doze espelhos para uma só 
imagem, abro a porta - estou só

e abro a porta. Olha: 
- eles vestem certamente 
a noite com uma uma pista imaginária e virão 
evadir-se pela escada - razão porque os espero, 

há tantas palavras em jornais que podem
servir de álibi, cartas que revelam nomes, 
profissões, locais, idades. 
Enquanto vejo os números, - visita-me a ideia 

de um testamento, elevo uma barragem contra 
a estação morta onde as horas se resolvem no vai
e vem de bolas de sabão jogadas do alto de uma 

escada, atravessando o corrimão do tempo.

Gostava que estivesses sentado como 
uma madona implacável olhando o porto para onde 
os olhos partem de onde quer  que os anos

venham vincar a testa, o olhar que devolve 
o testemunho secreto, essa obra eterna. Tão simples 

rasgar a tarde, fechar

o dia na carta em que se escreve a citação de escola
e vejo e consumo o olhar porque entre contemplar
e desejar, nada mais há do que o hiato que espera 

o elevador no patamar da escada - voo entre letras 
inflamadas - a tua leveza:

estrelas, barcos de um desenho de criança,
astronautas, jockeys, marinheiros. 

Baloiço-me no tédio, na linha contínua da
paisagem, recuso cultivar o pincel que traça

natureza; e parto com a dor de quem sujou 
a cara em tatuagens nos templos da memória

de onde os pés  lavam os estigmas da terra.

Se na tela humana houver um recado sobre a hora,
talvez aí o tempo se demore, prisioneiro de um 

jardim pensado de inocência onde te veja sorrir 
                  a iniciar a construção das coisas





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