Al Berto

horto


homens cegos procuraram a visão do amor
onde os dias ergueram esta parede
intransponível

caminham vergados no zumbido dos ventos
com os braços erguidos - cantam

a linha do horizonte é uma lâmina
corta os cabelos dos meteoros - corta
as faces dos homens que espreitam para o palco
nocturno das invisíveis cidades

escorre uma linfa prateada para o coração dos cegos
e o sono atormenta-os com os seus sonhos vazios

adormecem sempre
antes que a cinza dos olhos arda
e se disperse

no fundo do muito loge ouve-se
um lamento escuro
quando a alba se levanta de novo no horto
dos incêndios

prosseguem caminho
com a voz atada por uma corda de lírios
os cegos
são o corpo de um fogo lento - uma sarça
que se acende subitamente por dentro



inferno


na suave asa do grito reflecte-se o lume
comestível do tempo - a mão transformada
em polvo sacode a erva no sangue
da manhã

eis o mundo feérico das feridas incuráveis
o inferno
mesmo quando dormes gemes abandonado
ao estertor da chuva na vidraça e ao vento
que dança na persiana

não saberás nunca da tua metamorfose
em pantera aérea - vou proibir que te passeies
por cima dos sentimentos e dos móveis

e que te vingues
do hábil sedutor de feras



incêndio


se conseguires entrar em casa e
alguém estiver em fogo na tua cama
e a sombra duma cidade surgir na cera do soalho
e do tecto cair uma chuva brilhante
contínua e miudinha - não te assustes

são os teus antepassados que por um momento
se levantaram da inércia dos séculos e vêm
visitar-te

diz-lhes que vives junto ao mar onde
zarpam navios carregados com medos
do fim do mundo - diz-lhes que se consumiu
a morada de uma vida inteira e pede-lhes
para murmurarem uma última canção para os olhos
e adormece sem lágrimas - com eles no chão



avião


envolto num lençol de cal duas cintilações
sobre as pálpebras húmidas e um ardor perfura
a noite onde uma ponte atravessa um rio

o voo é demorado
ficaste a saber que nem deus é eterno
desfez-se no erro daquilo que criou perdeu-se
nas suas imperfeições e certezas

agora
pela janela do avião vês como tudo é mínimo
lá em baixo - quando a oriente da loucura
a mão cinzenta do inverno perdura no rosto
daqueles que sonolentos viajam dentro
deste pequeno túmulo de serenidade



Al Berto in Horto de Incêndio, 1997.



O PEQUENO DEMIURGO


escrevo barcos e uma quilha fende o vastíssimo mar
e as árvores crescem dos espaços enevoados
entre olhar e olhar movem-se
animais presos à terra com as suas plumagens de ferro
e de orvalho de ouro quando a lua se eclipsa
comunicando-lhes o cio a e nómada alegria de viver

penso outono ou inverno
e o lume resinoso dos pinhais escorre sobre o rosto
sobre o corpo em tímido gestos
eis o tempo
do capricórnio reduzido ao esconderijo tatuado
na asa mineral da ave em pleno voo e digo nuvens
relâmpago erva águas
homem
movimento do susto oceanos sal exaustos corpos
transumantes paixões digo
e surge irrompe escorrega ergue-se move-se vive
morre
mas não julguem ser trabalho simple nomear
arrumar e desordenar o mundo

para que não se apague esta trémula escrita
preciso do sonho e do pesadelo
da proximidade vertiginosa dos espelhos e
de pernoitar no fundo de mim com as mãos sujas
pelo árduo trabalho de construir os gestos exactos
da alegria que por descuido deus abandonou ao cansaço
no fim do sétimo dia




Al Berto in Degredo do Sul, 2007.
(Edição Póstuma)




MORTE DE RIMBAUD
DITA EM VOZ ALTA
NO COLISEU DE LISBOA
A 20 DE NOVEMBRO DE 1996



I.

  
todos os pássaros sossegaram.
as crianças desceram das árvores, guardaram os jogos, recolheram a casa.


a noite está próxima.

levanto a cabeça e deixo a voz deambular por dentro deste silêncio de água e de estrelas.

a noite está próxima.

deixo o corpo escorregar na poeira luminosa.
acendo um cigarro, ponho-me a falar com o meu fantasma.


longe daqui, a cidade enfeitou-se com seus crimes de néon, com suas traições.
ouço hélices de barcos, motores, quando um rosto esvoaça ao alcance da mão.

a verdade é que passei a vida a fugir, de cidade em cidade, com um sussurro cortante nos lábios.
e atravessei cidades e ruas sem nome, estradas, pontes que ligam uma treva a outra treva.
caminho como sempre caminhei, dentro de mim - rasgando paisagens, sulcando mares, devorando imagens.


o absinto, esse álcool que me permitiu medir o tempo no movimento dos astros.
e vi a vida como um barco à deriva, vi esse barco tentar regressar ao porto - mas os portos são olhos enormes que vigiam os oceanos. servem para levarmos o corpo até um deles e morrer.

a noite está próxima.

vejo acenderem-se mãos voláteis, e uma sede de poços e de nomadismo.
sulco a areia que sitia as cidades para trás abandonadas.
abro fendas na memória, e a noite surge com suas cidades queimadas, desertas - e o vento... o vento cintila onde cresce o lobo que me ronda o sono.
estendo a mão, pego no revólver, mas nada acontece.


de nada me serviria inventar outra vez o rio das palavras, de nada me serviria saber a geometria exacta dos cristais, ou redesenhar o corpo e aperfeiçoa-lo.
fico assim, inerte, à beira da noite... olhando o brilho da lua jorrando águas.

o regresso nunca foi possível.
o verdadeiro fugitivo não regressa, não sabe regressar. reduz os continentes a distâncias mentais.
aprende a fala dos outros - e, por cima dele, as constelações vão esboçando o tormentoso destino dos homens.

pressinto uma sombra a envolver-me, ouço música... espirais de som subindo aos subúrbios da alma.
e acendo o lume das pirâmides, onde o tempo não foi inventado, e renego a alegria.
não semearei o meu desgosto, por onde passar.
nem as minhas traições.



II.


não consigo dormir, nunca mais.
ando de um lado para o outro, canso o corpo, enquanto a língua segrega uma saliva exterminadora.


lá fora, dentro da noite, os chacais, as hienas cercam a casa. mas o pior é este chacal que me esfarrapa as vísceras, esta hiena que me devora o sonho.
pela janela vejo a linha crepuscular da duna.
um novo corpo liberta-se do meu e caminha fora de mim - vejo-o afastar-se em direcção aos nevoeiros das cidades.
sei, nesse instante, que nenhum abraço chega para atenuar a dor da separação.
afastados, tudo o que nos resta é começar a imitar a vida um do outro.


o que dissemos perdeu o sabor e o sentido.
harrar, aden, lisboa, este silêncio... capaz de ordenar e desordenar o mundo, o canto sublime das miragens.
mas vai chegar o inverno, e a tristeza dos dias começa a zumbir à roda da cabeça.


abri a janela.
avisto uma nesga de céu limpo.
lembro-me de quando trocava um sorriso por um verso, ou um insulto.
imitávamos assim a felicidade.


o sol fulmina a memória. limpa-a da crueldade do passado.
a vida, aqui, reduz-se a efémeros passos, surdas gargalhadas, ideias que se evaporam lentamente.
enfim, o mundo não é assim tão grande...


e a vida, afinal, é como as orquídeas - reproduz-se com dificuldade.
mas estou cansado.
os olhos fecham-se-me com o peso das paixões desfeitas.
imagens, imagens que se colam ao interior das pálpebras - imagens de neve e de miséria, de cidades obsessivas, de fome e de violência, de sangue, aquedutos, de esperma, de barcos, de comboios, de gritos... talvez... talvez uma voz.


o desejo de um sol impiedoso, sobretudo enquanto dormia.


e embarquei num cargueiro, desertei em java, pensei mesmo construir uma casa.
mas não foi possível.


ainda vejo aquelas árvores cobertas de ossos luminosos, e a duna incendiada, o deserto onde posso continuar a reconstruir o universo.


escavo no coração um poço de sal, para dar de beber ao viajante que fui.
deixo o vento arrastar consigo a infindável caravana de ilusões.


e digo: que tudo se afogue na gordura das manhãs, que tudo silencie... e uma língua de fogo atinja os livros que não escreverei.



III.


os dias estão cheios de cartas e de recomendações, de amigos que partem para sempre, ou adoecem, de recados e de intrigas, de contas intermináveis, de ouro, de corpos, de fortuna e de infortúnios.
de morte, e de cães feridos a uivar à porta da desolação.


uma espécie de miséria e de orgulho, escorrem no fundo de mim. e talvez seja a mistura venenosa da miséria com o orgulho que me há-de perder...

não tenho mais nada a dizer. os poemas morreram.
fugir tornou-se uma obsessão, ou então é a melhor maneira de encenar o desespero.
bebi águas inquinadas.
vi o corpo suspenso no rebordo dos poços, o coração batendo descontrolado.


mas a morte, quando se aproxima, é uma coisa simples... vem comer à mão a cinza melodiosa dos dias.
por isso sei que, ao amanhecer, posso perguntar:
quantas áfricas murcharam na boca do amor?
quantas feras despedaçadas foram comidas ao entardecer?
quantos homens conseguiram apaziguar o relâmpago da paixão?
quantos desejos ficaram abandonados na escuridão intacta dos quartos?


a qual dos demónios me vender?
que besta suja será preciso adorar?
em que sangue contaminado mergulharei a língua?
que fogo estranho é este? que devora a beleza interior das coisas...
que mentira me poderá salvar?


uma golada de veneno e eis que se acende o talento.
o rumor precioso das sílabas. o choro e o riso.
o brilho gelado das imagens.
então, ergo o cachimbo e fumo um tempo futuro, ajeito o cinturão onde guardo o outro - e vou pelo engano das palavras.


descubro a febre, a ânsia do eterno viajante.
abro as mãos, solto as borboletas e os pássaros - que dizem ser a alma dos mortos.
um espelho onde não me reconheço. mas o pior é que nunca acreditei no que me disseram, e parti o espelho.

o azar nunca mais me largou, e também não posso dizer que os negócios me tenham corrido bem.
foi maldição, dizem.
paciência. mas não há maldição sem desejo - e eu não páro de desejar, sôfrego... capaz de arriscar a vida e a razão.
ou de matar.

  

IV.


um rasgão de luz sobre a pele, dormes na seiva doce das manhãs.
mas sabes que só há repouso para o sofrimento quando se entra no primeiro dia dos dias sem ninguém.
a dor, a perna amputada, a chaga viva, o sangue a latejar - o mapa da abissínia.


o sol enterra-se nas areias.
viajo, sem me mexer desta enxerga branca.
tento encontrar espaço para a lucidez do meu silêncio.
no lugar do poema coalha o ouro das geadas, e os animais são formas etéreas que se me colam ao rosto.
o que morre, quase não faz falta...


dantes ouvia o mar... bastava encostar a cabeça ao peito um do outro.
mas um homem em cujo coração se tenha concentrado toda a fúria de viver, será um homem feliz?
não sei se posso querer alguma eternidade... não sei...

o que vejo já não se pode cantar.

que horas serão dentro do meu corpo?
que mineral vermelho jorraria se golpeasse uma veia... não sei... não sei...


o que vejo já não se pode cantar.


lembro-me duma cabeça rebelde flutuando junto à janela.
mas a casa está repleta de gemidos, vai amanhecer, não me lembro de mais nada.

o que vejo já não se pode cantar.

recomeço a fuga, a última, e nela hei-de morrer de olhos abertos, atento ao mínimo rumor, ao mais pequeno gesto - atento à metamorfose do corpo que sempre recusou o aborrecimento.

o que vejo já não se pode cantar.

caminho com os braços levantados, e com a ponta dos dedos acendo o firmamento da alma.
espero que o vento passe... escuro, lento. então, entrarei nele, cintilante, leve... e desapareço.




Al Berto in O Medo, 1997.