Anna Akhmatova

1

A CRIAÇÃO


Acontece deste modo: uma certa languidez;
No ouvido não se calam as pancadas dos relógios;
Ao longe diminui o estrondo do trovão.
E vislumbram-se queixas e gemidos
De aprisionadas vozes que não se reconhecem.
Um certo círculo secreto estreita-se,
Mas nesse abismo de badaladas e murmúrios
Levanta-se um som que tudo venceu.
É tal o silêncio irreparável em seu redor
Que se escuta como no bosque cresce a erva,
Como anda pela terra o mal com um alforge...
Mas as palavras começaram já a ouvir-se
E das rimas leves os tinidos de sinalização, -
É quando eu começo a compreender,
E de modo simples as linhas ditadas
Deitam-se no caderno branco de neve.


5 de Novembro de 1936



2

Não me interessam as hostes das odes
Nem o encanto das fantasias elegíacas.
Quanto a mim, nos versos tudo deve ser a despropósito,
Não ao modo das outras pessoas.

Se soubésseis de que porcarias
Crescem os versos sem terem vergonha,
Qual pampilho amarelo nas cercas,
Qual a bardana ou celga-brava.

Grito irritado, cheiro do pez fresco,
Misterioso bolor na parede...
E já soa o verso, fogoso, terno,
Para vossa alegria e minha.


21 de Janeiro de 1940



3

A MUSA


Como viver com esta maçada,
E ainda lhe chamam Musa,
Dizem: "Tu e ela nos prados..."
Dizem: "O murmúrio divino..."
Abanará mais duro que uma febre,
E de novo o ano inteiro caladinha.



4

O POETA


Tal coisa um trabalho, supões tu -
Descuidadosa maneira de viver:
Ouvir algo da música às ocultas
E dá-lo brincando como seu.

Como scherzo divertido de alguém
Em quaisquer versos colocado,
Jurar que um pobre coração
Assim geme entre o brilho das searas.

E depois ouvir o bosque às ocultas,
Os pinheiros com ar de poucas falas,
Por enquanto uma cortina de fumo
Da neblina por todo o lado.

Colho de um lugar ao outro,
E até, sem sentimento de culpa,
Um pouco de vida ardilosa,
E tudo - do silêncio nocturno.


Verão 1959
Komarovo



5

O LEITOR


Não deve ser muito infeliz
Nem, acima de tudo, ser reservado. Oh não!
Para ser claro aos contemporâneos,
Aberto de par em par o poeta.

O proscénio está debaixo dos pés,
Tudo lívido, vazio, iluminado,
As chamas frias das luzes da ribalta
Marcaram a sua fronte.

Mas cada leitor um mistério,
Como na terra o tesouro escondido,
Até mesmo o último, o de acaso,
O que se cala por toda a vida.

Aí tudo o que a natureza encubra,
Quando assim quiser, de nós.
Aí sem amparo alguém chora
Num qualquer momento destinado.

E tanta escuridão da noite aí
E sombra e tanta frescura,
Aí esses olhos desconhecidos
Até amanhecer comigo falam,

Por alguma coisa me censuram
Em alguma coisa concordam comigo...
Assim se escoa a confidência muda,
O ardor ditosíssimo do diálogo.

A nossa vida na terra passa breve
E é estreito o círculo destinado,
Porém ele é imutável e eterno -
O amigo ignoto do poeta.


Verão 1959
Komarovo



6

ÚLTIMO POEMA


Um, como o trovão alarmado por alguém,
Com a respiração da vida irrompe na casa,
Ri-se, vibra perto da garganta,
E redemoinha, e aplaude.

Outro, nascendo no silêncio da meia-noite,
Não sei de onde furtivo vem até mim,
Olha do espelho vazio
E murmura algo severamente.

Também alguns são assim: em pleno dia,
Quase como que sem me ver,
Fluem pelo papel sem nada,
Como fonte pura no barranco.

E eis mais: o misterioso anda por aí -
Não é um som nem uma cor, não é uma cor nem um som,
Talha-se, muda-se, entrelaça-se,
Mas às mãos vivo não se entrega.

Mas este!... gota a gota bebeu o sangue
Como na juventude uma rapariga má - o amor,
E, não me tendo dito uma única palavra,
De novo se tornou o silêncio.

E não soube nunca de desastre mais cruel,
Foi-se, e dele alongaram-se a pégadas
Até uma extrema extremidade,
E sem ele... eu morro.


1 de Dezembro de 1959
Leninegrado




Anna Akhmatova in Mistérios do Ofício, Poemas, 1992.
Tradução do Russo, Selecção e Notas de Joaquim Manuel Magalhães e Vadim Dmitriev.