Vladimir Maiakowski
O AMOR
Um dia, quem sabe,
ela, que também gostava de bichos,
apareça
numa alameda do zoo,
sorridente,
tal como agora está
no retrato sobre a mesa.
Ela é tão bela,
que, por certo, hão de ressuscitá-la.
Vosso Trigésimo Século
ultrapassará o enxame
de mil nadas,
que dilaceravam o coração.
Então,
de todo amor não terminado
seremos pagos
em inumeráveis noites de estrelas.
Ressuscita-me,
nem que seja só porque te esperava
como um poeta,
repelindo o absurdo quotidiano!
Ressuscita-me,
nem que seja só por isso!
Ressuscita-me!
Quero viver até o fim o que me cabe!
Para que o amor não seja mais escravo
de casamentos,
concupiscência,
salários.
Para que, maldizendo os leitos,
saltando dos coxins,
o amor se vá pelo universo inteiro.
Para que o dia,
que o sofrimento degrada,
não vos seja chorado, mendigado.
E que, ao primeiro apelo:
Camaradas!
atenta se volte a terra inteira.
Para viver
livre dos nichos das casas.
Para que
doravante
a família
seja
o pai,
pelo menos o Universo; a mãe,
pelo menos a Terra.
O POETA OPERÁRIO
Grita-se ao poeta:
“Queria te ver numa fábrica!
O que? versos? Pura bobagem!
Para trabalhar não tens coragem”.
Talvez
ninguém como nós
ponha tanto coração
no trabalho.
Eu sou uma fábrica.
E se chaminés
me faltam
talvez
sem chaminés
seja preciso ainda
mais coragem.
Sei.
Frases vazias não agradam.
Quando serrais madeira
é para fazer lenha.
E nós que somos
senão entalhadores a esculpir
a tora da cabeça humana?
Certamente que a pesca
é coisa respeitável.
Atira-se a rede e quem sabe?
Pega-se um esturjão!
Mas o trabalho do poeta é muito mais difícil.
Pescamos gente viva e não peixes.
Penoso é trabalhar nos altos-fornos
onde se tempera o ferro em brasa.
Mas pode alguém acusar-nos de ociosos?
Nós polimos as almas com a lixa do verso.
Quem vale mais: o poeta ou o técnico
que produz comodidades?
Ambos!
Os corações também são motores.
A alma é poderosa força motriz.
Somos iguais.
Camaradas dentro da massa operária.
Proletários do corpo e do espírito.
Somente unidos,
somente juntos remoçaremos o mundo,
fá-lo-emos marchar num ritmo célere.
Diante da vaga de palavras levantemos um dique!
Mãos à obra!
O trabalho é vivo e novo!
Com os oradores vazios, fora!
Moinho com eles!
Com a água de seus discursos que façam mover-se a mó!
O REUNISMO
Mal a noite se toma madrugada
cada qual a seu trabalho vai.
Vão para a “Firma”
para a Cia.
para a S.A.
para a Ltda.
e nos escritórios desaparecem.
Derrama-se em torrente a papelada
mal se entra nesses escritórios.
Procure-se entre cem
o mais importante!
os empregados estão sumidos nas reuniões.
Então apareço eu e pergunto:
“Quem pode me atender?
Estou aqui há não sei quanto tempo”.
— “O camarada Ivan Ivanitch está em reunião
com o Comissário Geral do Povo para as Questões do Vinho”.
Crispada de inumeráveis estrelas
a luz apenas pisca.
Repito. Respondem:
— “Peço-lhe para voltar daqui a uma hora.
Está em reunião
tratando da compra de tinta
para a Cia. etc., etc., etc., S.A.”.
Uma hora depois
Nem um funcionário
sequer um contínuo aparece...
tudo limpo, ninguém!
Todos, até os 22 anos,
estão lá em cima, numa reunião do Komsomol.
A noite vem caindo.
Subo ainda
até o último andar deste meu lar temporário.
“lá chegou o camarada Ivan Ivanitch?”
— “Não. Ainda reunido
com A, B, C, D, E, F, G, & Cia.”
Na tal reunião
entro como um furacão, abrindo caminho com pragas selvagens.
Que vejo!
Corpos pela metade, sentados.
Céus!
Onde estarão as outras metades?
“Decepados!
Assassinados!”
Correndo como um louco,
ponho-me a gritar.
Diante de tal quadro fico alucinado.
Ouço então
o mais calmo dos funcionários
observar:
“Eles estão em duas reuniões ao mesmo tempo”.
A vinte reuniões por dia
e às vezes mais
temos que assistir.
Por isso somos forçados
a em dois nos dividir!
Uma metade está aqui,
a outra
lá longe.
Não pude dormir, assombrado.
A luz da manhã me colheu estremunhado.
“Oh! peço somente uma
mais uma reunião
para acabar com tantas reuniões!”
ESTRELA
Escutai! Se as estrelas se acendem
será por que alguém precisa delas?
Por que alguém as quer lá em cima?
Será que alguém por elas clama,
por essas cuspidelas de pérolas?
Ei-lo aqui, pois, sufocado, ao meio-dia,
no coração dos turbilhões de poeira;
ei-lo, pois, que corre para o bom Deus,
temendo chegar atrasado,
e que lhe beija chorando a mão fibrosa.
Implora! Precisa absolutamente
duma estrela lá no alto!
Jura! Que não poderia mais suportar
essa tortura de um céu sem estrelas!
Depois vai-se embora,
atormentado, mas bancando o gaiato
e diz a alguém que passa:
“Muito bem! Assim está melhor agora, não é?
Não tens mais medo, hein?”
Escutai, pois! Se as estrelas se acendem
é porque alguém precisa delas.
É porque, em verdade, é indispensável
que sobre todos os tetos, cada noite,
uma única estrela, pelo menos, se alumie.
A BLUSA AMARELA
Do veludo de minha voz
Umas calças pretas mandarei fazer.
Farei uma blusa amarela
De três metros de entardecer.
E numa Nevski mundial com passo pachola
Todo dia irei flanar qual D. Juan frajola.
Deixai a terra gritar amolengada de sono:
“Vais violar as primaveras verdejantes!”
Rio-me, petulante, e desafio o sol!
“Gosto de me pavonear pelo asfalto brilhante!”
Talvez seja porque o céu está tão celestial
E a terra engalanada tornou-se minha amante
Que lhes ofereço versos alegres como um carnaval
Agudos e necessários como um estilete para os dentes.
Mulheres que amais minha carcaça gigante
E tu, que fraternalmente me olhas, donzela.
Atirai vossos sorrisos ao poeta
Que, como flores, eu os coserei
À minha blusa amarela!
O QUE ACONTECEU
Mais do que é permitido,
mais do que é preciso,
como um delírio de poeta
sobrecarregando o sonho:
a pelota do coração tomou-se enorme,
enorme o amor,
enorme o ódio.
Sob o fardo,
as pernas vão vacilantes.
Tu o sabes,
sou bem fornido,
entretanto me arrasto,
apêndice do coração,
vergando as espáduas gigantes.
Encho-me dum leite de versos
e, sem poder transbordar,
encho-me mais e mais.
CLAMO
Levantei-o como um atleta,
levei-o como um acrobata,
como se levam os candidatos ao comício,
como nas aldeias se toca a rebate
nos dias de incêndio.
Clamava:
“Aqui está, aqui! Tomai-o!”
Quando este corpanzil se punha a uivar,
as donas
disparando
pelo pó, pelo barro ou pela neve,
como um foguete fugiam de mim.
— “Para nós, algo um tanto menor,
algo assim como um tango...
Não posso levá-lo
e carrego meu fardo.
Quero arremessá-lo fora
e sei, não o farei.
Os arcos de minhas costelas não resistem.
Sob a pressão
range a caixa torácica.
TU
Entraste.
A sério, olhaste
a estatura,
o bramido
e simplesmente adivinhaste:
uma criança.
Tomaste,
arrancaste-me o coração
e simplesmente foste com ele jogar
como uma menina com sua bola.
E todas,
como se vissem um milagre,
senhoras e senhoritas exclamaram:
— A esse amá-lo?
Se se atira em cima, derruba a gente!
Ela, com certeza, é domadora!
Por certo, saiu duma jaula!
E eu de júbilo
esqueci o jugo.
Louco de alegria saltava
como em casamento de índio tão leve,
tão bem me sentia.
IMPOSSÍVEL
Sozinho não posso
carregar um piano
e menos ainda um cofre-forte.
Como poderia então
retomar de ti meu coração
e carregá-lo de volta?
Os banqueiros dizem com razão:
“Quando nos faltam bolsos,
nós que somos muitíssimo ricos,
guardamos o dinheiro no banco”.
Em ti
depositei meu amor,
tesouro encerrado em caixa de ferro,
e ando por aí
como um Creso contente.
É natural, pois,
quando me dá vontade,
que eu retire um sorriso,
a metade de um sorriso
ou menos até
e indo com as donas
eu gaste depois da meia-noite
uns quantos rublos de lirismo à toa.
CONVERSA SOBRE POESIA
COM O INSPETOR DE IMPOSTOS DA LITERATURA
— Cidadão inspetor!
Desculpe o incômodo.
Obrigado...
Não se preocupe...
Ficarei de pé.
Tenho um assunto a lhe falar
bastante delicado...
Trata-se do lugar que devem ocupar
os poetas
nas fileiras operárias.
Entre os que gozam de direitos e deveres estou eu,
também multado por impostos.
O sr. me exige
500 rublos por semestre
e mais 25 por não ter feito declaração no prazo.
Meu trabalho
é semelhante
a qualquer outro.
Observe o sr.
quantas perdas ocasiona,
quantas reservas
e quantos gastos exige o meu material.
O sr.
naturalmente
conhece
esse fenômeno que se chama “rima”.
Quer dizer,
se a linha termina com a palavra “sombra”
o sr. encontrará por perto
o sr. encontrará por perto
a palavra “alfombra”.
No seu entender
a rima é um cheque.
É preciso sacá-lo
a todo custo.
Busca-se o detalhe
no cofre vazio
das designações
Toma-se esta palavra,
mas ela não entra.
ou conjunções.
tenta-se metê-la na estrofe,
Aperta-se e ela se parte.
Cidadão inspetor,
palavra de honra,
ao poeta acodem
palavras de dez centavos.
Falando a meu modo, dir-lhe-ei:
A rima
um barril com dinamite. Acesa a estrofe,
é um barril,
A estrofe é a mecha.
explode...
e voa a estrofe
pelos ares da cidade.
Onde se encontram
e a que tarifa
rimas que apontem
e de um golpe matem?
Talvez
sejam cinco
as rimas mais raras
e talvez
andem perdidas
para lá
da Venezuela.
Sinto calor, calafrios, só de pensá-lo.
Atrapalhado por dívidas e empréstimos
lhe digo:
Cidadão,
leve em conta
as despesas de viagem.
Toda poesia
A poesia
é como a extração do rádio.
Um ano de trabalho
pra conseguir uma grama.
Extrair uma só palavra de rádio
dentre mil toneladas
de palavras de matéria-prima.
Mas estas palavras ardentes
são como cinzas quentes
perto do fumegar
da palavra bruta.
Estas palavras
põem em movimento milhares de anos
e milhões de corações.
Naturalmente
é diferente
a qualidade dos poetas.
têm a mão longa.
Como um mágico
soltam estrofes pela boca,
tirando-as dos demais.
E que dizer dos líricos castrados?
Filam uma estrofe alheia
e ficam contentes.
Isso
é um simples roubo e esbanjamento
no esbanjamento e na dissipação
abundantes em nosso país.
Esses versos e odes aplaudidos
e discutidos
entrarão na história
como gastos suplementares
de dois ou três versos bons.
Como se diz,
dezenas de quilos de sal
deverás comer,
centenas de ciganos deverás fumar,
antes de extraíres a palavra valiosa,
das funduras artesianas da alma humana.
E serão menores os impostos.
Tire-se uma roda aos zeros.
Um rublo e noventa
custam os cem cigarros.
Um rublo e sessenta
custa o sal fino.
Em seu questionário
há muitas perguntas.
— Fez viagens ou não?
E se lhe respondo
que nestes quinze anos
tenho viajado como centenas de Pegasus?
Coloque-se o sr.
no meu lugar.
E se eu lhe disser
que sou um condutor do povo
e que, por minha vez, trabalho para servi-lo?
A classe operária
vibra em nossas palavras
e somos nós
motores proletários
da pena.
A máquina da alma
gasta-se com os anos.
E então dizem:
para o arquivo!
Acabou-se,
já é tempo!
Ama-se menos,
a gente atreve-se menos,
e minha cabeça,
com o tempo,
já não baterá pelas paredes.
a mais terrível das amortizações,
a amortização
da alma e do coração.
E quando o sol,
engrandecido e taurino,
se levantar num porvir
sem aleijados nem mendigos,
eu já estarei podre,
morto sob uma taipa
com dezenas de meus colegas.
Afirmo e sei que não minto:
como um marco,
entre os gozadores e fuleiros atuais,
estarei só,
com uma dívida infinita.
Nossa dívida
é uivar como sirene de bronze
entre a névoa pequeno-burguesa
e no fervedouro da tormenta.
O poeta
é sempre devedor do universo
e paga com sofrimentos
as multas e os impostos.
Eu contraí dívidas
com as ruas da Broadway,
com os céus de Bagdá,
com o Exército Vermelho,
com os jardins de cerejeiras do Japão,
com tudo aquilo
que ainda não pude cantar.
A palavra do poeta
é vossa ressurreição,
vossa imortalidade,
cidadão inspetor.
Ao cabo de cem anos,
dentre maços de papéis,
destacarei uma estrofe
e farei rememorar esse tempo.
E esse dia se levantará
com brilhos de milagre
e o cheiro da tinta exalada o envolverá,
senhor inspetor.
Mande o habitante de hoje
comprar um bilhete para a imortalidade
e, calculando o efeito dos versos,
seja meu salário dividido por trezentos anos.
Mas a força do poeta
não reside
em que do sr. mal ou bem se recordem, no futuro.
Não! Hoje,
a rima do poeta
é carícia
palavra de ordem, látego
e baioneta.
e baioneta.
Cidadão inspetor, pagarei os cinco
e todos os zeros que vêm depois.
Eu, na verdade,
quero apenas um lugar, na terra dos operários e camponeses.
Mas se o sr. pensa
que tudo consiste em saber utilizar palavras alheias, então,
camarada,
aqui está minha caneta-tinteiro, pode escrever sozinho!
Vladimir Maiakowski in MAIAKOWSKI Antologia Poética, LeBooks, 2020.
Tradução LeBooks.