Marina Tsvietaieva

UM POETA A PROPÓSITO DA CRÍTICA


NÃO PODE SER CRÍTICO...


A primeira obrigação do crítico é a de não escrever maus versos. Em todo o caso, de não os publicar.

Como posso confiar na voz de N, digamos, que não vê a mediocridade dos seus próprios versos? A principal virtude do crítico é a de saber ver. E o que primeiro - escreve; e segundo - publica, é um cego! Mas pode ser-se cego consigo próprio e ver claramente o alheio. (...)

(...)

O crítico medíocre N, que estimula em si mesmo o poeta medíocre, garante-me que daquilo que escrevo ele chamará mau ou bom. (...) Se como exemplo me propusessem Pushkin, naturalmente que guardaria silêncio e provavelmente reflectiria a esse respeito. Mas não me dêem como exemplo N - não o aceitarei e desatarei a rir! ( o que são os versos de um crítico de poesia, ajuizado por todos os erros alheios, senão um modelo? Acaso de falibilidade? Todo aquele que publica os seus versos declara: "São bons". O críto ao publicá-los, declara: "São exemplares". Por isso o único poeta que não merece indulgência é o juiz. Eu só julgo os juízes).

A confiança infundada de N-poeta - ratificada pela falibilidade e punibilidade de N-crítico. Ao não se ter julgado a si mesmo, converteu-se em acusado e fez de nós, acusados, os seus juízes. Simplesmente eu não julgarei o mau poeta N. Para isso lá está a crítica. Mas o juiz N, culpado do delito de que me acusa, a esse julgá-lo-ei. Um juiz culpado! Rápida revisão de todos os casos!

E assim, como regra - e quando não temos uma grande actividade artística e atrás dela um grande homem: os maus versos são imperdoáveis num crítico de poesia. É um mau crítico - mas talvez escreva bons versos? Não, também os seus versos são maus (N-crítico). Maus versos mas quiçá boa crítica? Não, também a crítica é má. N-poeta destrói a fé em N-crítico e N-crítico destrói a fé em N-poeta. Não importa como se encare a questão...


NÃO TEM DIREITO A SER CRÍTICO...


Justiça, senhores, e, se é coisa que não há, pelo menos um pouco de senso comum!

Para ter uma opinião sobre qualquer coisa é necessário viver com ela e amá-la..

(...)

Apenas pode ajuizar sobre a qualidade, sobre a essência, sobre tudo o que não é a aparência de uma coisa, quem vive e trabalha nesse campo.. A atitude é sua, mas a avaliação não lhe pertence.

O mesmo, senhores, exactamente o mesmo ocorre com a arte. Aqui têm uma poesia minha. Podem gostar ou não, podem compreendê-la ou não, pode ser "bonita" (para vós) ou não. Mas se é boa ou má como poesia - isso pode dizê-lo somente o perito, o amante e... o mestre. Quando os senhores julgam um mundo em que não vivem, cometem simplesmente, um abuso de poder.

(...)

Quem na crítica não é profeta - é artesão. Com direito ao trabalho, mas não ao juízo.


O crítico: ver a três séculos de distância e até aos confins da terra.


Tudo o que disse é válido também para o leitor. O crítico: um leitor absoluto com a caneta na mão.


QUEM ESCUTO...


Escuto, de entre os não profissionais (isto não quer dizer que escute os profissionais), qualquer grande poeta e qualquer grande homem, e melhor - ambos como se fossem um só.

A crítica de um grande poeta, na sua maior parte, é a crítica apaixonada: de afinidade ou não afinidade. Por isso - atitude pessoal para com uma obra e não um juízo; por isso: não-crítica; por isso, talvez, o escuto. Se das suas palavras não surge a minha imagem, em todo o caso aparece - ele. Uma espécie de confissão, como quando sonhamos com outra pessoa: ages tu, mas eu sugiro! O direito à afirmação, o direito à negação - quem os didcute? Eu estou unicamente contra o direito ao julgamento.

(...)

Quando oiço falar de certa "natureza poética da alma", penso que isso não é correcto, e ainda se fosse correcto não se referiria exclusivamente aos poetas. O poeta é um homem multiplicado por mil, e os diferentes poetas distinguem-se entre si como as diversas pessoas. O poeta, em primeiro lugar, é alguém saído dos confins da alma. O poeta da alma, e não na alma ( a própria alma - de). Em segundo lugar, é alguém que saiu dos confins da alma - na palavra. E, em terceiro, quem seria "poeta na alma"? Homero ou Ronsard? Derjavin ou Pasternak? - a diferença não está na época, mas sim na essência -, Goethe ou Schiller, Pushkin ou Lermontov, Maiakovski ou Pasternak, enfim?

Igualdade do dom da alama e da palavra - é isso o poeta. Por isso não há poetas que não escrevam nem poetas que não sintam. Sentes mas não escreves - não és poeta (onde está a palavra?); escreves mas não sentes - não és poeta (onde está a alma?). Onde a essência? Onde a forma? Identidade. Indivisibilidade da da essência e da forma - é isso o poeta. Eu prefiro, naturalmente, o que não escreve mas sente, ao outro que que não sente mas escreve. O primeiro - quem sabe? - amanhã será poeta. Ou santo Ou herói. O segundo (o versificador) não é ninguém. E o seu nome é legião.


A QUEM OBEDEÇO


Obedeço a algo que constantemente, mas não de um modo uniforme, ressoa em mim, dando-me indicações oou dando-me ordens. Quando indica - questiona; quando ordena - submeto-me.

O que ordena é o verso primário, imutável e insubstituível, a essência que se apresenta sob a forma de verso (muitas vezes no último dístico, emtorno do qual depois cresce tudo o resto). O que indica é o caminho acústico até ao verso: escuto a melodia, não escuto as palavras. Procuro as palavras.

(...)


Ouvir correctamente - é essa a minha preocupação. Não tenho outra.


PARA QUEM ESCREVO


Não para milhões, não para um só, não para mim. Escrevo para a própria poesia. A poesia, através de mim, escreve-se. Para chegar aos outros ou a si mesma?

(...)

Para que escrevo? Escrevo porque não posso não escrever. A uma pergunta sobre a finalidade - uma resposta sobre o motivo, não pode haver outra.




Marina Tsvietaieva in O Poeta e o Tempo, 1993.
Tradução de Fernando Pinto do Amaral s/ a ed. espanhola de Selma Ancira.