Carlos Drummond de Andrade
PAPEL
E tudo que pensei
E
tudo que eu falei
E tudo que me contaram
Era papel.
E
tudo que descobri
Amei
Detestei: papel.
Papel quanto
havia em mim
E nos outros, papel!
De jornal, de
embrulho.
Papel de papel, papelão!
COTA ZÉRO
Stop.
A vida
parou
ou foi o automóvel?
O CENSOR
O censor olhou-se
no
espelho e censurou-o:
Que horror!
NÃO SE MATE
Carlos, sossegue, o amor
é isso que você está vendo:
hoje
beija, amanhã não beija,
depois de amanhã é domingo
e
segunda-feira ninguém sabe
o que será.
Inútil você resistir
ou mesmo suicidar-se.
Não se
mate, oh não se mate,
reserve-se todo para
as bodas que
ninguém sabe
quando virão,
se é que virão.
O amor, Carlos, você telúrico,
a noite passou em você,
e
os recalques se sublimando,
lá dentro um barulho
inefável,
rezas,
vitrolas,
santos que se
persignam,
anúncios do melhor sabão,
barulho que ninguém
sabe
de quê, pra quê.
Entretanto você caminha
melancólico e vertical.
Você
é a palmeira, você é o grito
que ninguém ouviu no teatro
e
as luzes todas se apagam.
O amor no escuro, não, no claro,
é
sempre triste, meu filho, Carlos,
mas não diga nada a
ninguém,
ninguém sabe nem saberá.
VERBO SER
Que
vai ser quando crescer?
Vivem perguntando em redor. Que é
ser?
É ter um corpo, um jeito, um nome?
Tenho os três. E
sou?
Tenho de mudar quando crescer? Usar outro nome, corpo e
jeito?
Ou a gente só principia a ser quando cresce?
É
terrível, ser? Dói? É bom? É triste?
Ser; pronunciado tão
depressa, e cabe tantas coisas?
Repito: Ser, Ser, Ser. Er.
R.
Que vou ser quando crescer?
Sou obrigado a? Posso
escolher?
Não dá para entender. Não vou ser.
Vou crescer
assim mesmo.
Sem ser Esquecer.
A MÁQUINA DO MUNDO
E como eu
palmilhasse vagamente
uma estrada de Minas, pedregosa,
e no
fecho da tarde um sino rouco
se misturasse ao som de
meus sapatos
que era pausado e seco; e aves pairassem
no
céu de chumbo, e suas formas pretas
lentamente se
fossem diluindo
na escuridão maior, vinda dos montes
e de
meu próprio ser desenganado,
a máquina do mundo se
entreabriu
para quem de a romper já se esquivava
e só de
o ter pensado se carpia.
Abriu-se majestosa e
circunspecta,
sem emitir um som que fosse impuro
nem um
clarão maior que o tolerável
pelas pupilas gastas
na inspeção
contínua e dolorosa do deserto,
e pela mente
exausta de mentar
toda uma realidade que
transcende
a própria imagem sua debuxada
no rosto do
mistério, nos abismos.
Abriu-se em calma pura, e
convidando
quantos sentidos e intuições restavam
a quem
de os ter usado os já perdera
e nem desejaria
recobrá-los,
se em vão e para sempre repetimos
os mesmos
sem roteiro tristes périplos,
convidando-os a
todos, em coorte,
a se aplicarem sobre o pasto inédito
da
natureza mítica das coisas,
assim me disse, embora
voz alguma
ou sopro ou eco ou simples percussão
atestasse
que alguém, sobre a montanha,
a outro alguém,
noturno e miserável,
em colóquio se estava dirigindo:
“O
que procuraste em ti ou fora de
teu ser restrito e
nunca se mostrou,
mesmo afetando dar-se ou se rendendo,
e a
cada instante mais se retraindo,
olha, repara,
ausculta: essa riqueza
sobrante a toda pérola, essa
ciência
sublime e formidável, mas hermética,
essa
total explicação da vida,
esse nexo primeiro e singular,
que
nem concebes mais, pois tão esquivo
se revelou ante
a pesquisa ardente
em que te consumiste… vê, contempla,
abre
teu peito para agasalhá-lo.”
As mais soberbas
pontes e edifícios,
o que nas oficinas se elabora,
o que
pensado foi e logo atinge
distância superior ao
pensamento,
os recursos da terra dominados,
e as paixões e
os impulsos e os tormentos
e tudo que define o ser
terrestre
ou se prolonga até nos animais
e chega às
plantas para se embeber
no sono rancoroso dos
minérios,
dá volta ao mundo e torna a se engolfar
na
estranha ordem geométrica de tudo,
e o absurdo
original e seus enigmas,
suas verdades altas mais que
tantos
monumentos erguidos à verdade;
e a
memória dos deuses, e o solene
sentimento de morte, que
floresce
no caule da existência mais gloriosa,
tudo
se apresentou nesse relance
e me chamou para seu reino
augusto,
afinal submetido à vista humana.
Mas,
como eu relutasse em responder
a tal apelo assim
maravilhoso,
pois a fé se abrandara, e mesmo o anseio,
a
esperança mais mínima — esse anelo
de ver desvanecida a
treva espessa
que entre os raios do sol inda se filtra;
como
defuntas crenças convocadas
presto e fremente não se
produzissem
a de novo tingir a neutra face
que
vou pelos caminhos demonstrando,
e como se outro ser, não mais
aquele
habitante de mim há tantos anos,
passasse
a comandar minha vontade
que, já de si volúvel, se
cerrava
semelhante a essas flores reticentes
em
si mesmas abertas e fechadas;
como se um dom tardio já não
fora
apetecível, antes despiciendo,
baixei os
olhos, incurioso, lasso,
desdenhando colher a coisa oferta
que
se abria gratuita a meu engenho.
A treva mais
estrita já pousara
sobre a estrada de Minas, pedregosa,
e
a máquina do mundo, repelida,
se foi miudamente
recompondo,
enquanto eu, avaliando o que perdera,
seguia
vagaroso, de mão pensas.
CONGRESSO INTERNACIONAL DO MEDO
Provisoriamente não
cantaremos o amor,
que se refugiou mais abaixo dos
subterrâneos.
Cantaremos o medo, que esteriliza os abraços,
não
cantaremos o ódio, porque este não existe,
existe apenas o
medo, nosso pai e nosso companheiro,
o medo grande dos sertões,
dos mares, dos desertos,
o medo dos soldados, o medo das mães,
o medo das igrejas,
cantaremos o medo dos ditadores, o medo dos
democratas,
cantaremos o medo da morte e o medo de depois da
morte.
Depois morreremos de medo
e sobre nossos túmulos
nascerão flores amarelas e medrosas
POEMA DE SETE FACES
Quando nasci, um
anjo torto
desses que vivem na sombra
disse: Vai, Carlos!
ser gauche na vida.
As casas espiam os homens
que
correm atrás de mulheres.
A tarde talvez fosse azul,
não
houvesse tantos desejos.
O bonde passa cheio de
pernas:
pernas brancas pretas amarelas.
Para que tanta
perna, meu Deus,
pergunta meu coração.
Porém meus
olhos
não perguntam nada.
O homem atrás do
bigode
é sério, simples e forte.
Quase não conversa.
Tem
poucos, raros amigos
o homem atrás dos óculos e do
bigode.
Meu Deus, por que me abandonaste
se
sabias que eu não era Deus
se sabias que eu era fraco.
Mundo
mundo vasto mundo,
se eu me chamasse Raimundo
seria uma
rima, não seria uma solução.
Mundo mundo vasto mundo,
mais
vasto é meu coração.
Eu não devia te dizer
mas
essa lua
mas esse conhaque
botam a gente comovido como o
diabo.
NO MEIO DO CAMINHO
No meio do caminho
tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
tinha
uma pedra
no meio do caminho tinha uma pedra.
Nunca me
esquecerei desse acontecimento
na vida de minhas retinas tão
fatigadas.
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
tinha
uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
no meio do
caminho tinha uma pedra.
OS OMBROS SUPORTAM O MUNDO
Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus.
Tempo de
absoluta depuração.
Tempo em que não se diz mais: meu
amor.
Porque o amor resultou inútil.
E os olhos não
choram.
E as mãos tecem apenas o rude trabalho.
E o
coração está seco.
Em vão mulheres batem à porta, não abrirás.
Ficaste
sozinho, a luz apagou-se,
mas na sombra teus olhos resplandecem
enormes.
És todo certeza, já não sabes sofrer.
E nada
esperas de teus amigos.
Pouco importa venha a velhice, que é a velhice?
Teus ombros
suportam o mundo
e ele não pesa mais que a mão de uma
criança.
As guerras, as fomes, as discussões dentro dos
edifícios
provam apenas que a vida prossegue
e nem todos
se libertaram ainda.
Alguns, achando bárbaro o
espetáculo
prefeririam (os delicados) morrer.
Chegou um
tempo em que não adianta morrer.
Chegou um tempo em que a vida
é uma ordem.
A vida apenas, sem mistificação.
Carlos Drummond de Andrade in Poesia Completa: volume único, Nova Aguilar, 2007.