Nicanor Parra

RITOS


De cada vez que regresso
ao meu país
            depois de uma longa viagem
o que faço primeiro
é perguntar pelos que morreram:
todos os homens são heróis
pelo simples facto de morrerem,
e os heróis são os nossos mestres.

Em segundo lugar,
             pelos feridos.
Só depois,
                não antes de cumprir
este pequeno rito funerário,
me considero com direito à vida:
cerro os olhos para ver melhor
e canto com rancor
uma canção dos princípios do século.




JOVENS


Escrevam o que queiram.
No estilo que lhes pareça melhor.
Passou demasiado sangue sob as pontes
para continuar-se a crer
que possa seguir-se um só caminho.

Em poesia tudo é permitido.

Com a condição expressa
            é evidente
de superar-se o papel em branco.




MANCHAS NA PAREDE


Antes que caia a noite total
havemos de estudar as manchas da parede:
umas parecem plantas
outras assemelham-se a animais mitológicos

Hipogrifos,
                 dragões,
                               salamandras.

Mas as mais misteriosas de todas
são as que parecem explosões atómicas.

No cinema da parede 
a alma vê o que o corpo não vê:
homens ajoelhados
mães com criaturas nos braços
monumentos equestres
sacerdotes erguendo a hóstia:

orgão genitais que se ajuntam.

Mas as mais extraordinárias de todas
são
         sem dúvida alguma
as que parecem explosões atómicas.




"ME RETRACTO DE TODO LO DICHO"


Antes de despedir-me
tenho direito a um último desejo:
Generoso leitor
                        queima este livro
não representa o que eu quis dizer
apesar de ter sido escrito com sangue
não representa o que eu quis dizer.

A minha situação não pode ser mais triste
fui derrotado pela própria sombra:
as palavras vingaram-se de mim.

Perdoa-me leitor
leitor amigo
que não possa despedir-me de ti
com um abraço fiel:
despeço-me de ti
com um triste sorriso forçado.

Pode ser que eu não seja mais do que isso
mas escuta a minha última palavra:
retracto-me de tudo o que disse.
Com a maior amargura do mundo
retracto-me de tudo o que disse.




Nicanor Parra in Poesia do século XX 
(De Thomas Hardy a C. V. Cattaneo), 1978.
Antologia, Tradução, Prefácio e Notas de Jorge de Sena.