Wisława Szymborska


Museu


Há pratos, mas falta apetite.

Há alianças, mas o amor recíproco se foi

há pelo menos trezentos anos.


Há um leque — onde os rubores?

Há espadas — onde a ira?

E o alaúde nem ressoa na hora sombria.


Por falta de eternidade

juntaram dez mil velharias.

Um bedel bolorento tira um doce cochilo,

o bigode pendido sobre a vitrine.


Metais, argila, pluma de pássaro

triunfam silenciosos no tempo.

Só dá risadinhas a presilha da jovem risonha do Egito.


A coroa sobreviveu à cabeça.

A mão perdeu para a luva.

A bota direita derrotou a perna.


Quanto a mim, vou vivendo, acreditem.

Minha competição com o vestido continua.

E que teimosia a dele!

E como ele adoraria sobreviver!



Recital da autora


Musa, não ser um boxeador é literalmente não existir.

Nos recusaste a multidão ululante.

Uma dúzia de pessoas na sala,

já é hora de começar a fala.

Metade veio porque está chovendo,

o resto é parente. Ó Musa.


As mulheres adorariam desmaiar nesta noite outonal,

e vão, mas só ao assistir a uma luta colossal.

Só lá as cenas dantescas.

E o ascenso aos céus. Ó Musa.


Não ser boxeador, ser poeta,

estar condenado a duras florbelas,

por falta de musculatura mostrar ao mundo

a futura leitura escolar - na melhor das hipóteses -

Ó Musa. Ó Pégaso,

anjo equestre.


Na primeira fila um velhinho sonha docemente

que a finada esposa ressuscitou e

assa para ele um bolo com passas.

Com fogo, mas não alto, para o bolo não queimar,

começamos a leitura. Ó Musa.



Repenso o mundo


Repenso o mundo, segunda edição,

segunda edição corrigida,

aos idiotas o riso,

aos tristes o pranto,

aos carecas o pente,

aos cães botas.


Eis um capítulo:

A Fala dos Bichos e das Plantas,

com um glossário próprio

para cada espécie.

Mesmo um simples bom-dia

trocado com um peixe,

a ti, ao peixe, a todos

na vida fortalece.


Essa há muito pressentida,

de súbito revelada,

improvisação da mata.

Essa épica das corujas!

Esses aforismos do ouriço

compostos quando imaginamos

que, ora, está só adormecido!


O tempo (capítulo dois)

tem direito de se meter

em tudo, coisa boa ou má.

Porém - ele que pulveriza montanhas

remove oceanos e está

presente na órbita das estrelas,

não terá o menor poder

sobre os amantes, tão nus

tão abraçados, com o coração alvoroçado

como um pardal na mão pousado.


A velhice é uma moral

só na vida de um marginal.

Ah, então todos são jovens!

O sofrimento (capítulo três)

não insulta o corpo.

A morte

chega com o sono.


E vais sonhar

que nem é preciso respirar,

que o silêncio sem ar

não é uma música má,

pequeno como uma fagulha,

a um toque te apagarás.


Morrer, só assim. Dor mais dolorosa

tiveste segurando nas mãos uma rosa

e terror maior sentiste ao som

de uma pétala caindo no chão.


O mundo, só assim. Só assim

viver. E morrer só esse tanto.

E todo o resto - é como Bach

tocado por um instante

num serrote.




Wisława Szymborska in Poemas, Companhia das Letras, 2011.

Seleção, tradução e prefácio de Regina Przybycien.

Outros poemas

Cave canem

Tango

Papéis soltos

Fim de linha

Pélago da terra

Pendulum

Os alquimistas