Mary Oliver


ACORDO JUNTO À MANHÃ


Porque pedem as pessoas para ver

              os papéis de identidade de Deus

quando a escuridão que se abre para a manhã

              é mais do que suficiente?

Certamente qualquer deus poderia afastar-se em desgosto.

Pensa em Sabá quando se aproxima

              do reino de Salomão.

Pensas que foi obrigada a questionar,

              “É este o lugar?”



O MUNDO EM QUE VIVO


Recusei-me a viver

trancado na ordeira casa de

        razões e provas.

O mundo em que vivo e creio

é mais amplo do que isso.

        O que há de errado com Talvez?


Sei que não acreditarias no que uma ou

duas vezes vi. Por isso

        vou dizer-te apenas isto:

somente se houver anjos em tua cabeça irás

        alguma vez, possivelmente, ver algum.



ESSA PEQUENA FERA


Essa pequena fera, um poema,

       tem vontade própria.

Às vezes quero desejar maçãs

       mas quer carne vermelha.

Às vezes quero caminhar em paz

       na costa

e quer tirar toda a roupa

       e mergulhar.


Às vezes quero usar palavras pequenas

       e torná-los importantes

e começa a gritar o dicionário,

       as oportunidades.


Às vezes quero resumir e agradecer,

       pondo as coisas em ordem

e começa a dançar pela sala

       sobre as quatro patas peludas, rindo

e chamando-me insultante.


Mas às vezes, quando estou a pensar em ti,

       e sem dúvida a sorrir,

senta-se em silêncio, uma pata sob o queixo,

       e apenas ouve.



A DÁDIVA


Permanece quieta, minha alma, e firme.

A Terra e o céu ainda estão observando

embora o tempo se esteja a esgotar no relógio

e a sua caminhada, outrora confiante e rápida,

seja agora lenta.


Então, embora lenta se for necessário, deixe

o coração cumprir ainda o verdadeiro papel.

Ama ainda como uma vez amaste, profundamente

e sem paciência. Deixa que Deus e o mundo

saibam que estás grata.

Que a dádiva foi dada.



AS PEDRAS SENTEM?


As pedras sentem?

Amam sua vida?

Ou a sua paciência domina tudo o resto?


Quando caminho na praia reúno algumas

as brancos, as escuras, as de múltiplas cores.

Não se preocupem, digo, vou trazer-vos de novo, e assim faço.


A árvore cresce encantada com os seus muitos

galhos,

cada um como sendo um poema?


As nuvens alegram-se em descarregar os seus fluxos de chuva?


A maior parte do mundo diz não, não, não é possível.


Recuso-me pensar em tal conclusão.

Seria ademais terrível estar errada.



O PROFESSOR DE POESIA


A universidade deu-me uma nova e elegante

sala de aula para ensinar. Somente há uma coisa,

disseram. Não pode trazer consigo o seu cão.

Está no meu contrato, disse.

certifiquei-me disso.)


Negociamos e mudei-me para uma velha

sala de aula num prédio antigo. Mantive

a porta aberta. Coloquei uma tigela de água

na sala. Podia ouvir Ben entre

outras vozes latindo, uivando à

distância. Depois todos eles entraram -

Ben, os seus amigos, talvez a um novo cão

ou mesmo dois, todos eles sedentos e felizes.

Beberam, atiravam-se para o chão

entre os estudantes. Os estudantes adoraram.

Todos escreveram sedentos, felizes poemas.



TRÊS COISAS PARA RECORDAR


Enquanto danças, podes

     quebrar as regras.

Às vezes, quebrar as regras é apenas

     estender as regras.


Às vezes não há regras.




Mary Oliver in Devotions, The Selected Poems of Mary Oliver, Penguin Press, 2017.

Versão Portuguesa de Luísa Vinuesa.

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