Percy Shelley


Defesa da Poesia

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A poesia em sentido geral pode ser definida como “a expressão da imaginação”, e é congénita do homem. Este é o instrumento para o qual uma série de impressões internas e externas é conduzida, como a alternância de um vento sempre mutável, para uma harpa eólica, fazendo-a vibrar numa melodia sempre vária. Mas um princípio existe em todo o ente humano, e talvez em todos os seres sensíveis, que actua de maneira diversa daquela como age na lira e produz não só melodia, mas harmonia também, mercê de um ajustamento interno de sons e de movimentos assim excitados, às impressões que os excitam. É como se a lira pudesse acomodar as suas cordas ao movimento do que as fere, numa determinada proporção de som, da mesma maneira que o cantor pode acomodar a sua voz ao som da lira.

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Os poetas, conforme as circunstâncias da época e do país em que surgiram, foram chamados nas primeiras idades do mundo, lesgiladores ou profetas: o poeta inclui e une, essencialmente, estes dois caracteres, pois ele não só contempla intensamente o presente como tal e descobre aquelas leis segundo as quais as coisas presentes devem ser ordenadas, mas também o futuro no presente, e os seus pensamentos são os germes da flor e do fruto do tempo a vir. Não que eu sustente que os poetas sejam profetas no vulgar sentido do termo, ou que eles possam predizer a forma, tão seguramente como prevêem o espírito dos acontecimentos – isso seria o intento da superstição que faz da poesia um atributo da profecia, em vez da profecia um atributo da poesia. O poeta participa do eterno, do infinito  e do uno; não existem, pois, tempo, lugar, e número que determinem as suas concepções.

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A poesia é sempre acompanhada de prazer: todos os espíritos, sobre os quais ela recaí, abrem-se para receber a sabedoria que se encontra misturada com tal deleite. Na infância do mundo nem os próprios poetas nem os seus ouvintes se apercebiam plenamente da excelência da poesia; porque ela age de maneira divina e inapreensível para além e acima da consciência; está reservado às gerações futuras contemplar e medir a poderosa causa e efeito em toda a força e esplendor da sua união. Nem nos tempos modernos poeta vivo atingiu jamais a plenitude da fama; o júri – essencialmente intemporal – que julga um poeta, deve ser composto de seus pares; e estes devem ser eleitos pelo tempo e de entre os mais doutos de muitas gerações. (…)

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Um poema é a própria imagem da vida, explicada na sua verdade eterna. Uma diferença existe entre uma história e um poema, que é esta: uma história é um catálogo de factos desligados, que não possuem nenhuma outra conexão que não seja o tempo, lugar, circunstâncias, causa e efeito; o poema é a criação das acções de acordo com as formas imutáveis da natureza humana, como existem no espírito do Criador, que é ele próprio a imagem de todos os outros espíritos. (…) O tempo que destrói a a beleza e a utilidade da história dos factos particulares, destituidos da poesia que os deveria investir, aumenta os da poesia e desenvolve para sempre novas e maravilhosas aplicações da verdade que ela contém. (…)

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Os poetas são os hierofantes de uma inspiração inapreendida; os espelhos das gigantescas sombras que a futuridade lança sobre o presente; as palavras que exprimem o que não compreendem; as trombetas que conduzem à batalha e não sentem o que inspiram; a influência que não é movida, mas move.

Os poetas são os legisladores não reconhecidos do mundo.



Percy Shelley in Defesa da Poesia, Guimarães, 1986.

Prefácio, Tradução do Inglês e Notas de J. Monteiro-Grillo

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