Cecília Meireles
MOTIVO
EU CANTO porque o instante existe
e a minha vida está completa.
Não sou alegre nem sou triste:
sou poeta.
Irmão das coisas fugidias,
não sinto gôzo nem tormento.
Atravesso noites e dias
no vento.
Si desmorono ou si edifico,
si permaneço ou me desfaço,
— não sei, não sei. Não sei si fico
ou passo.
Sei que canto. E a canção é tudo.
Tem sangue eterno a asa ritmada.
E um dia sei que estarei mudo:
- mais nada.
NOITE
HUMIDO gôsto de terra,
cheiro de pedra lavada
— tempo inseguro do tempo! —
sombra do flanco da serra,
nua e fria, sem mais nada.
Brilho de areias pisadas,
sabor de folhas mordidas,
— lábio da voz sem ventura! —
suspiro das madrugadas
sem coisas acontecidas.
A noite abria a frescura
dos campos todos molhados,
— sòzinha, com o seu perfume! —
preparando a flor mais pura
com ares de todos os lados.
Bem que a vida estava quieta.
Mas passava o pensamento...
— de onde vinha aquela música?
E era uma nuvem repleta,
entre as estrêlas e o vento.
ANUNCIAÇÃO
TOCA essa música de sêda, frouxa e trêmula,
que apenas embala a noite e balança as estrêlas noutro mar.
Do fundo da escuridão nascem vagos navios de ouro,
com as mãos de esquecidos corpos quási desmanchados no vento.
E o vento bate nas cordas, e estremecem as velas opacas,
e a água derrete um brilho fino, que em si mesmo logo se perde.
Toca essa música de sêda, entre areias e nuvens e espumas.
Os remos pararão no meio da onda, entre os os peixes suspensos:
e as cordas partidas andarão pelos ares dançando à-tôa.
Cessará esta música de sombra, que apenas indica valores de ar.
Não haverá mais nossa vida, talvez não haja nem o pó que fomos.
E a memória de tudo desmanchará suas dunas desertas,
e em navios novos homens eternos navegarão.
DISCURSO
E AQUI estou, cantando.
Um poeta é sempre irmão do vento e da água:
deixa seu ritmo por onde passa.
Venho de longe e vou para longe:
mas procurei pelo chão os sinais do meu caminho
e não vi nada, porque as ervas cresceram e as serpentes andaram.
Também procurei no céu a indicação de uma trajectória,
mas houve sempre muitas nuvens.
E suicidaram-se os operários de Babel.
Pois aqui estou, cantando.
Se eu nem sei onde estou,
como posso esperar que algum ouvido me escute?
Ah! se eu nem sei quem sou,
como posso esperar que venha alguém gostar de mim?
RETRATO
EU NÃO tinha êste rosto de hoje,
assim calmo, assim triste, assim magro,
nem êstes olhos tão vazios,
nem o lábio amargo.
Eu não tinha estas mãos sem fôrça,
tão paradas e frias e mortas;
eu não tinha êste coração
que nem se mostra.
Eu não dei por esta mudança,
tão simples, tão certa, tão fácil:
- Em que espêlho ficou perdida
a minha face?
CONVENIÊNCIA
CONVÉM que o sonho tenha margens de nuvens rápidas
e os pássaros não se expliquem, e os velhos andem pelo sol,
e os amantes chorem, beijando-se, por algum infanticídio
Convém tudo isso, e muito mais, e muito mais...
E por êsse motivo aqui vou, como os papéis abertos
que caem das janelas dos sobrados, tontamente…
Depois das ruas, e dos trens, e dos navios,
encontrarei casualmente a sala que afinal buscava,
e o meu retrato, na parede, olhará para os olhos que levo.
E encolherei meu corpo nalguma cama dura e fria.
(Os grilos da infância estarão cantando dentro da erva...)
E eu pensarei: «Que bom! nem é preciso respirar!...»
FIO
NO FIO da respiração,
rola a minha vida monótona,
rola o pêso do meu coração.
Tu não vês o jôgo perdendo-se
como as palavras de uma canção.
Passas longe, entre nuvens rápidas,
com tantas estrêlas na mão…
— para que serve o fio trêmulo
em que rola o meu coração?
Cecília Meireles in Viagem, Império, 1937.
(Texto original em pdf © eBooksBrasil, 2006)