Anne Sexton

 

A ARTE NEGRA


Uma mulher que escreve sente demais,

esses transes e presságios!

Como se ciclos e crianças e ilhas

não fossem suficientes; como se enlutados 

e intriguistas 

e os legumes nunca fossem suficientes.

Ela pensa que pode avisar as estrelas.

Um escritor é essencialmente um espião.

Querido amor, sou essa rapariga. 


Um homem que escreve sabe demais,

tal como feitiços e fetiches!

Como se erecções e congressos e produtos

não fossem suficientes; como se máquinas 

e galeões

e as guerras nunca fossem suficientes.

Com móveis usados ​​faz uma árvore.

Um escritor é essencialmente um bandido.

Querido amor, és esse homem. 


Nunca nos amamos,

odiando até os nossos sapatos e chapéus,

nós não amamos, precioso, precioso.

As nossas mãos são azuis claras e gentis.

Os olhos cheios de confissões terríveis.

Quando estamos em demasia,

as crianças partem enojadas.

Há muita comida e ninguém sobrou

para comer toda a estranha abundância.



CINDERELA


Lês sempre isto:

o canalizador com doze filhos

que ganha o sorteio irlandês.

De sanitas a riquezas.

Essa história. 


Ou a ama de crianças,

um docinho delicioso da Dinamarca

que seduz o coração do filho mais velho.

de fraldas à Dior.

Essa história. 


Ou um leiteiro que serve aos ricos,

ovos, creme, manteiga, iogurte, leite,

o camião branco como uma ambulância

que entra no mercado imobiliário

e ganha um dinheirão.

De lacticínios a martinis ao almoço. 


Ou a empregada de limpeza 

que vai no autocarro que derrapa

e recolhe o suficiente do seguro.

De esfregões a Bonwit Teller.

Essa história. 


Era uma vez

a mulher de um homem rico que jazia no seu leito de morte,

e disse a sua filha Cinderela:

Seja devota. Seja boazinha. E então sorrirei

descendo do céu na fenda de uma nuvem.

O homem desposou outra mulher que tinha

duas filhas, suficientemente bonitas com

corações como um jogo de cartas a dinheiro. 

Cinderela era a sua empregada.

Dormia junto à lareira com fuligem

e andava por aí parecendo Al Jolson.

O pai trouxe presentes da cidade,

jóias e vestidos para as outras mulheres

e um ramo de árvore para Cinderela.

Plantou-o no túmulo da sua mãe e o ramo

cresceu até uma árvore onde pousava uma pomba branca.

Sempre que ela desejava alguma coisa 

a pomba deixava-a cair como um ovo no chão.

O pássaro é importante, meus queridos,  prestem-lhe atenção. 


Em seguida veio o baile, como todos sabem.

Era um mercado de casamento.

O príncipe estava a escolher uma mulher.

Todas, excepto Cinderela, preparavam-se

e arrajavam-se para o baile.

Cinderela implorou para ir também.

A madrasta atirou um prato de lentilhas

para as cinzas e disse: apanha-as todas

numa hora, então irás.

A pomba branca trouxe as suas amigas;

todas as asas quentes do seu país natal vieram,

e recolheram as lentilhas num instante.

Não, Cinderela, disse a madrasta,

não tens roupas, não podes dançar.

É assim com as madrastas. 


Cinderela foi para a árvore no túmulo

e gritou como um cantor gospel:

Mamã! Mamã! Minha pomba,

manda-me para o baile do príncipe!

O pássaro deixou cair um vestido dourado

e delicados sapatos.

De certo um grande fardo para um simples pássaro.

E assim foi. O que não é nenhuma surpresa.

A madrasta e irmãs não a reconheceram 

sem o rosto coberto de cinzas

e o príncipe agarrou-a pela mão

e dançou com ela o dia inteiro. 


Quando a noite chegou, pensou que seria melhor

ir para casa. O príncipe levou-a a casa

mas ela desapareceu no pombal

e embora o príncipe pegasse num machado e o rebentasse,

ela já tinha partido. De volta às suas cinzas.

Esses eventos repetiram-se por três dias.

Contudo no terceiro dia, o príncipe

cobriu os degraus do palácio com cera de sapateiro

e colou nele o sapato dourado de Cinderela.

Agora iria saber em quem o sapato se ajustava

e encontrar para sempre a sua invulgar dançarina.

Foi a casa delas e as duas irmãs

ficaram encantados porque tinham lindos pés.

A mais velha entrou numa sala para experimentar o sapato

mas o dedo grande não entrava, então cortou-o 

e colocou o sapato.

O príncipe ia partir com ela quando a pomba branca

lhe disse para olhar para o sangue que jorrava.

É assim com as amputações.

Não curam simples como um desejo.

A outra irmã cortou o calcanhar

mas o sangue falou por si mesmo.

O príncipe estava a ficar cansado.

Começou a sentir-se como um vendedor de sapatos.

Mas fez uma última tentativa.

Desta vez a Cinderela entrou no sapato

como uma carta de amor no seu envelope. 


Na cerimónia de casamento

as duas irmãs vieram com lisonjas

e a pomba branca bicou nos seus olhos.

Dois pontos ocos foram deixados

como colheres de sopa. 


Cinderela e o príncipe

viveram, dizem, felizes para sempre,

como duas bonecas numa caixa de museu

nunca incomodadas por fraldas ou poeira,

nunca discutindo sobre o tempo de um ovo,

nunca contando a mesma história duas vezes,

nunca tendo o excesso de peso da meia-idade,

os seus queridos sorrisos colados por toda a eternidade.

Os habituais Gémeos Bobbsey.

Essa história.



OS BOMBEIROS


Nós somos a América.

Nós somos os que enchem o caixão.

Nós somos os merceeiros da morte.

Empacotamo-los em caixas como couve-flores. 


A bomba abre como uma caixa de sapatos.

E a criança?

A criança certamente não está bocejando.

E a mulher?

A mulher banha-se em seu coração.

Foi-lhe arrancado 

e porque está queimado

e como último acto

está a lavá-lo no rio.

Este é o mercado da morte. 


América,

onde estão as tuas credenciais?



A MORTE DE SYLVIA


Ó Sylvia, Sylvia,

com um caixão de pedras e colheres,

com dois filhos, dois meteoros

vagando soltos numa pequena sala de jogos,

com a boca no lençol,

na viga do telhado, na oração muda,

(Sylvia, Sylvia

onde foste

desde que me escreveste

de Devonshire

sobre o cultivo de batatas

e a criação de abelhas?)

o que te fez parar,

mal te deitaste?

Ladra -

como entraste,

rastejando sozinha para baixo

na morte que queria tanto e por tanto tempo,

a morte que dissémos que ambas superámos,

a que usávamos em nossos magros seios,

aquela de que tantas vezes falámos cada vez

que bebíamos três martinis extra-secos em Boston,

a morte que falava de analistas e curas,

a morte que falava conspirando como noivas,

a morte que bebemos,

os motivos e a acção silenciosa?

(Em Boston

Os moribundos

andam de táxi,

sim a morte de novo,

aquele passeio para casa

com o nosso menino.)

Ó Sylvia, lembro-me do ensonado baterista 

que nos bateu nos olhos com uma velha história,

como queríamos deixá-lo vir

como um sádico ou uma fada de Nova York

para fazer o seu trabalho,

uma necessidade, uma janela na parede ou um berço,

e desde então esperou

sob o nosso coração, o nosso armário,

e vejo agora que o armazenámos

ano após ano, velhos suicídios 

e com a notícia da tua morte tive

um gosto terrível por ele, como sal,

(E eu,

eu também.

E agora, Sílvia,

tu novamente

com a morte novamente,

aquele passeio para casa

com o nosso menino.)

E digo apenas

com os meus braços estendidos naquele lugar de pedra,

será que a tua morte não é 

senão uma velha pertença,

uma toupeira que caiu

de um dos teus poemas?

(Ó amiga,

enquanto a lua for adversa

e o rei partir,

e a rainha estiver no limite

a mosca do bar deveria cantar!)

Ó pequena mãe,

tu também!

Ó divertida duquesa!

Ó loira coisa!



DEMÓNIO


Um jovem tem medo de seu demónio e às vezes coloca a mão sobre a boca dele...

D. H. Lawrence


Mencionei o meu demónio a um amigo

e o amigo nadou em óleo até mim

e gorduroso e enigmático

disse-me,

"Estou a pensar pendurá-lo num gancho.

Já o penhorei anos atrás." 


Quem o compraria?

O demónio penhorado,

Amarelecido com o esquecimento

e pendurado pela garganta?

Tire-o do gancho, meu amigo,

mas cuidado com a dor

que vai voar da sua boca como um pássaro. 


O meu demónio,

frequentemente despe-se,

frequentemente trago um crucifixo,

frequentemente deito à água uma margarida morta

frequentemente é a criança que dei à luz

e depois abortei, sem nome, sem nome...

sem terra. 


Ó demónio interior,

tenho medo e raramente levo a mão

à boca e cozo-a

tapando-te, sufocando-te

longe dos olhos do voyeur público

das teclas da minha máquina de escrever.

Se deveria penhorar-te,

que ouro valerias,

que centavos, nadando em beijos de cobre,

que ave rumando ao perecer? 


Não.

Não.

Aceito-te, 

vem com os mortos que povoam os meus sonhos,

que andam por toda a secretária 

(como em minha Mãe, o cancro florescendo 

Best & Co. nos seios -

valsando com o seu fantasma de papel de seda)

os mortos, que dão doces aos meus diabetes,

que dão parafusos para a apreensão de rosas

que às vezes voam dentro e fora de mim.

Sim.

Sim.

Aceito-te, demónio.

Não vou fechar a tua boca.

Se for homem que amo, seja maçã carregada e suja,

se for mulher que amo, seja doente até ao sangue 

e gases açucarados e galhos tombados. 


Demónio avança,

chamo ainda que seja por Deus 

de pé como uma chacina,

que me quer comer,

começando nos lábios e na língua.

E querendo deslizar em seus despojos,

tomo o pão e o vinho,

e o demónio peida-se e ri

por deixar escapar Deus pl'a boca fora,

mulher anónima

em altar anónimo.



OS ANJOS CAÍDOS


"Quem são eles"

"Anjos caídos que não eram bons o suficiente para serem salvos,

nem o suficiente para se perderem", dizem os camponeses.


Vêm para a minha branca

folha de papel e deixam uma mancha de Rorschach.

Não fazem isso por serem maus,

Fazem-no para me dar o sinal

de que me querem, como Aubrey Beardsley disse uma vez,

para me fazer andar à volta até que algo venha.

Desajeitada como sou,

Assim faço.

Pois sou como eles –

salvos e perdidos,

caindo para baixo como Humpty Dumpty

fora do alfabeto.

Todas as manhãs empurro-os para fora da minha cama

e quando entram na salada

rolando nela como cães,

escolho um deles

do modo que a minha filha

escolhe as anchovas.

Em Maio dançam nos junquilhos,

esgotando os dedos dos pés,

rindo como peixes.

Em Novembro,

o mês terrível,

sugam a infância das bagas

e tornam-nas azedas e intragáveis.

No entanto, fazem-me companhia.

Agitam a vida.

Transmitem a sua magia

como Sortidos Salva-Vidas.

Acompanham-me ao dentista

e protejem-me da broca.

Ao mesmo tempo,

vão para a aula comigo

e mentem as meus alunos.

Ó anjo caído,

companheiro dentro de mim,

sussurra algo sagrado

antes de me beliscares

na sepultura.



CIGARROS E UÍSQUE E MULHERES SELVAGENS


Talvez tenha nascido ajoelhada,

nascida a tossir no longo inverno,

esperando pelo beijo da misericórdia,

com uma paixão pela rapidez

mas, à medida que as coisas progrediam,

Aprendi cedo acerca da estacada,

ou a afastar o fumo do clíster.

Com dois ou três anos aprendi a não me ajoelhar,

a não esperar, a plantar os meus fogos no subsolo

onde ninguém além de bonecas, perfeitas e terríveis,

poderia sussurrar ou ser colocado para morrer. 


Agora que escrevi muitas palavras,

e larguei tantos amores, por outros tantos,

fui totalmente o que sempre fui -

mulher de excessos, de zelo e ganância.

Acho o esforço inútil.

Se olho para o espelho,

durante estes dias, não vejo

um rato bêbado que desvia os olhos?

Não sinto fome tão agudamente

que prefira morrer a olhar

o teu rosto?

Mais uma vez me ajoelho,

caso a misericórdia venha 

na hora certa.




Anne Sexton in The Complete Poems of Anne Sexton

Prefácio de Maxine Kumin

Houghton Mifflin Company Boston, 1981.

Versão Portuguesa de Luísa Vinuesa.

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