Mia Couto
Idades
No início,
eu queria um instante.
A flor.
Depois,
nem a eternidade me bastava.
E desejava a vertigem
do incêndio partilhado.
O fruto.
Agora,
quero apenas
o que havia antes de haver vida.
A semente.
Biografia
Todo o meu nascer
foi prematuro.
Agora,
em meus filhos
me vou dando às luzes.
Descendo, sim,
dos que hão de vir.
A primeira vez da idade
A vez
que tive mais idade
foi aos cinco anos.
Meu pai,
com solenidade que eu desconhecia,
perante seus superiores hierárquicos,
apontou e disse:
- Este é meu filho!
E deu-me a mão
coroando-me rei.
A luz da dor
O meu modo de saber é adoecendo.
A uns, a ideia surge em luz.
Em mim, se declara
uma pontada no peito.
O advento da dor,
o deflagrar da súbita febre
e eu sei que o meu corpo sabe.
Um dia destes
me desconhecerei vivo
desfalecido de aguda sapiência.
Até lá
repartirei com um anjo
o doce milagre da refeição.
Rosa
Não ascendo a rosa.
Fico por espinho, crosta, remorso.
Lição do gesto
de quem retira a mão,
gotejando sangue,
em castigo
de querer possuir
a beleza da flor.
Me sufoca o ser,
me assusta o querer ser.
O que mais quero ter
é a impossibilidade do ter.
O espelho
Esse que em mim envelhece
assomou ao espelho
a tentar mostrar que sou eu.
Os outros de mim,
fingindo desconhecer a imagem,
deixaram-me, a sós, perplexo,
com meu súbito reflexo.
A idade é isto: o peso da luz
com que nos vemos.
Mia Couto in Poemas Escolhidos, Seleção do autor
Apresentação de José Castello. Companhia Das Letras, 2016.