André Breton
CARTA ÀS VIDENTES
Minhas Senhoras,
Já é tempo, fazei justiça. A estas horas, jovens belas como o dia martirizam os joelhos nos escaninhos onde as vai atraindo o ignóbil zangão branco. Acusam-me de pecados por vezes adoravelmente mortais (como se pudesse haver pecados), enquanto o outro vaticina, se agita ou perdoa. Quem estamos aqui a enganar?
Penso nessas moças jovens, nessas mulherer moças que deveriam depositar toda a confiança em vós, únicas tributárias e únicas guardiãs do Segredo. Falo do grande Segredo, do Inerrebatável. Já não seriam obrigadas a mentir. Diante de vós, como em toda a parte, poderiam ser as mais elegantes, as mais loucas. E escutar-vos, apenas pressentir-vos, de mão luminosa e pernas cruzadas.
Penso em todos os homens perdidos nos tribunais sonoros. Julgam que vão aqui responder por um amor, ali por um crime. Em vão passam revista à memória: que se passou então? Nunca podem esperar mais que uma absolvição parcial. Todos infinitamente infelizes. Por terem feito o que com toda a simplicidade acharam dever fazer, mais uma vez por não terem recebido ordens do maravilhoso (a maior parte das vezes por não saberem como recebê-las), ei-los seguindo por um caminho que, o mais dolorosamente possível, virão a sentir que não era o deles, e que dependeria de um auxílio exterior, aleatório do resto por excelência, recusarem-se a continuar nesse sentido. A vida, a indesejável vida, passa a encantar. Cada um contribui com a ideia que consegue fazer da sua própria liberdade, e Deus sabe como geralmente esta ideia é tímida. (...) O pobre assumiu o seu destino com paciência, e creio que com paciência eterna. (...) A sua imaginação é um teatro em ruínas, um sinistro poleiro para papagaios e corvos. Este homem só quer ser senhor da sua vontade; a cada instante se vangloria de tirar a limpo o princípio da sua autoridade. Uma pretensão extravagante está talvez na origem de todos os seus dissabores. Nem por isso se deixa de privar voluntariamente da assistência do que ele não conhece, quero dizer, do que não pode conhecer, e para se justificar todos os argumentos lhe servem. A invenção da Pedra Filosofal por Nicolas Flammel já quase não encontra qualquer crédito, pela simples razão de que o grande alquimista não parece ter enriquecido o suficiente. No entanto, para além dos escrúpulos de carácter religioso, que talvez tenha tido, de conquistar uma vantagem tão vulgar, pode perguntar-se em que é que poderia tê-lo interessado a obtenção de mais algumas parcelas de ouro, quando antes de mais nada se tratava de edificar uma determinada fortuna espiritual. Esta necessidade de industrialização, que preside à objecção que se faz a Fammel, vamos encontrá-la um pouco por toda a parte: é um dos principais factores da derrota do espírito. Foi ela que deu origem a esta furiosa mania de fiscalização cuja denúncai será a única glória do surrealismo. (...)
(...)
(...) Duvidareis do vosso direito e da vossa força a ponto de quererdes fingir por muito tempo que fazeis como os outros, como os que vivem de uma profissão? Também vimos os poetas furtarem-se à luta por desdém, e no entanto eis que eles tornam a si, em nome da parcela de vidência, pouco diferente da vossa, que eles têm. Basta de verdades particulares, basta de virtudes esplêndidas guardadas em anéis! Estamos à procura, estamos na pista de uma verdade moral, da qual o menos que se pode dizer é que nos proíbe de agir com circunspecção. É preciso que essa verdade cegue. Olhem, ali está ela, a próxima erupção do Vesúvio! (...) Mas esta passividade, tão mulheres como sóis basta por ora, suplico-vos que a deixeis. Invadirão as vossas casas na véspera da feliz catástrofe. Não nos abandoneis: havemos de vos reconhecer no meio da multidão pelos vossos cabelos desatados. Dai-nos pedras, pedras brilhantes para atirarmos aos infames padres. Nós já não vemos este mundo como ele é, estamos ausentes. Aqui está já o amor, eis os soldados do passado!