António José Forte


AINDA NÃO


Ainda não
não há dinheiro para partir de vez
não há espaço de mais para ficar
ainda não se pode abrir uma veia
e morrer antes de alguém chegar

ainda não há uma flor na boca
para os poetas que estão aqui de passagem
e outra escarlate na alma
para os postos à margem
.
ainda não há nada no pulmão direito
ainda não se respira como devia ser
ainda não é por isso que choramos às vezes
e que outras somos heróis a valer

ainda não é a pátria que é uma maçada
nem estar deste lado que custa a cabeça
ainda não há uma escada e outra escada depois
para descer à frente de quem quer que desça
.
ainda não há camas só para pesadelos
ainda não se ama só no chão
ainda não há uma granada
ainda não há um coração



O BOM ARTÍFICE

    
                             Entretanto
        dez séculos mais tarde no local do drama
                               o diabo
                      diante do seu fomo
           levanta por instantes seus doces olhos
                   para quatro mil cadafalsos

                                Vêde
                  mais além o bom artífice
                            mostrando
                                anjos
                                  ou
                                batéis

                        ainda uma canção

                              se gostais
                          de belas torturas
                          não ouvireis nada


  
RETRATO DO ARTISTA EM CÃO JOVEM


Com o focinho entre dois olhos muito grandes
 por trás de lágrimas maiores
 este é de todos o teu melhor retrato
 o de cão jovem a que só falta falar
 o de cão através da cidade
 com uma dor adolescente
 de esquina para esquina cada vez maior
 latindo docemente a cada lua
 voltando o focinho a cada esperança
 ainda sem dentes para as piores surpresas
 mas avançando a passo firme
 ao encontro dos alimentos

 aqui estás tal qual
 és bem tu o cão jovem que ninguém esperava
 o cão de circo para os domingos da família
 o cão vadio dos outros dias da semana
 o cão de sempre
 cada vez que há um cão jovem
 neste local da terra



DESOBEDIÊNCIA CIVIL


Esta manhã deste século
entre anjos caídos
a lava da voz humana

podem ouvir neste local da terra
de nome de animal de patas obscenas
como um búzio da cabeça ao sexo
e do sexo à flor do espasmo

vem do murmúrio do caos
e rebenta em sílabas de abelhas nos ouvidos

agora atravessa mil novecentos e oitenta e sete
e todos os meus anos bêbados
vai de um pólo ao outro da memória
e regressa como um tiro no tempo
                através do fogo

                   *

à beira do abismo onde começa a adolescência
a grande hélice de estrelas
e os animais favoritos de toda a fome na terra
um automóvel   outro automóvem
um cemitério de automóveis
e é a civilização que amanhece

entre pombos de asas de chumbo
os adoradores do cometa de sangue
vestidos de amianto
e a máquina de escrever dos generais
escreve a palavra cadáver ininterruptamente
aé ao final do último acto

                *

se a preguiça encantadora dos homens
deve acabar a sua obra e a sua língua de fogo
unir os dias e as noites do desejo
então saudemos as grandes afirmações:
" a poesia deve ser feita por todos" e
"a poesia é feita contra todos"

os devoradores de cultura podem sair pela esquerda alta
fiquem os amantes obscuros  e o único  os raros
todos nus
porque a língua portuguesa não é a minha pátria
a minha pátria não se escreve com letras de palavra pátria

Vede
sobre a coroa de silêncio do vulcão adormecido
uma ave  a sua plumagem de cores trémulas
e as asas que escrevem letra a letra o nome definitivo do homem
e no entanto multidões de gnomos
cada qual com o seu estandarte
esperam à entrada dos cemitérios
para saudar o fogo-fátuo

eu passo de bicicleta à velocidade do amor
atravesso a terra de ninguém com um dia de chuva na cabeça
para oferecer aos revoltados 



GRANDE ÉCRAN


No grande écran
a festa do homem lobo do homem
e a sua mulher de bicicleta
até que um século de furor
abra a cratera donde irrompe o rosto do poeta
as suas mãos borboletas gigantes
os seus pés peixes voadores
a sua boca asa de fogo branco
e outro século
erga a pirâmide de palavras
que se derramem docemente
de anel em anel
até ao último século



António José Forte in Corpo de Ninguém, Hiena, 1989.

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