Paulo Leminski


contranarciso


em mim

eu vejo o outro

e outro

e outro

enfim dezenas

trens passando

vagões cheios de gente

centenas


o outro

que há em mim

é você

você

e você


assim como

eu estou em você

eu estou nele

em nós

e só quando

estamos em nós

estamos em paz

mesmo que estejamos a sós


*


o p

que no pequeno &

se esconde

eu sei por q


só não sei onde

nem e


*


sobre a mesa vazia

abro a toalha limpa

a mente tranquila

palavra mais linda


aqui se acaba

a noite mais braba

a que não queria

virar puro dia


somos um outro

um deus, enfim,

está conosco



cesta feira


oxalá estejam limpas

as roupas brancas de sexta

as roupas brancas da cesta


oxalá teu dia de festa

cesta cheia

                feito uma lua

toda feita de lua cheia


no branco

                lindo

teu amor

               teu ódio

                             tremeluzindo

                                                   se manifesta


tua pompa

tanta festa

tanta roupa

                   na cesta

                                cheia

                                         de sexta


oxalá estejam limpas

as roupas brancas de sexta

oxalá teu dia de festa


*


mesmo

na idade

de virar

eu mesmo


ainda confundo

felicidade com este

nervosismo


*


eu

quando olho nos olhos

sei quando uma pessoa

está por dentro

ou está por fora


quem está por fora

não segura

um olhar que demora


de dentro do meu centro

este poema me olha



desmontando o frevo


desmontando

o brinquedo

eu descobri

que o frevo

tem muito a ver

com certo jeito mestiço de ser

um jeito misto

de querer

isto e aquilo

sem nunca estar tranquilo

com aquilo

nem com isto


de ser meio

e meio ser

sem deixar

de ser inteiro

e nem por isso

desistir

de ser completo

mistério


eu quero

ser o janeiro

a chegar em fevereiro

fazendo o frevo

que eu quero

chegar na frente

em primeiro


*


das coisas

que eu fiz a metro

todos saberão

quantos quilômetros

são


aquelas

em centímetros

sentimentos mínimos

ímpetos infinitos

não?


*


parar de escrever

bilhetes de felicitações

como se eu fosse camões

e as ilíadas dos meus dias

fossem lusíadas,

rosas, vieiras, sermões


*


o soneto a crônica o acróstico

o medo do esquecimento

o vício de achar tudo ótimo

e esses dias

longos dias feito anos

sim pratico todos

os gêneros provincianos




Paulo Leminski in Caprichos & Relaxos, Companhia das Letras, 1ª ed. 1983.

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