António Ramos Rosa
É FRÁGIL ESTA SOMBRA
É
frágil esta sombra, frágil. E
esta escrita sem lâmpada,
sem
cavalos na montanha.
É frágil este pulso, e
este início.
Uma porta que não se abre, uma manhã tão
triste.
Esta casa cheia de dias e de dias
e eu só
desejo
abrir não sei que espaço, romper, abrir.
Sinais
sinais da terra outra.
Estacas.
Palavras.
Estacas.
Lâminas.
E
não o jardim, não a folhagem nem o fogo.
Porque estes dedos
são dedos de sombra
e o fruto perde-se, o fruto e a pedra
do
fruto.
Os dentes desertaram da boca. E onde a boca?
Onde a
água da boca aqui na folha?
Onde se levanta o vento, a
linguagem do fogo?
Invento um arco? E sem o mar
sem o
teu corpo.
Mas escrevo estes sinais contra o deserto.
Tantas
marcas atrozes, tanto silêncio.
Inscrevo (eu sei) apenas
inúteis setas
no círculo, entre tenazes.
Eu sei
(aqui o digo) busco o seio límpido
e esta é a dor da terra
mais triste
e eu não sei se desisti se ainda insisto.
Animal
é o fogo e o espaço livre.
E se as bocas se encontram, se o
fruto vive
sobre a pedra branca, se o círculo se abre
se
nós quisermos que a terra seja a terra.
Quem clama no
escuro, que outras sombras
se revoltam — que outras
palavras
poderiam inscrever a terra nesta folha?
Eu
desejo outro espaço o espaço do desejo
na folha mesma
onde
inscrever
as palavras dos arcos do silêncio
ou as pedras
da liberdade livre.
A flexão feliz dos membros nus
e
esse canto que ascende para as árvores
e o rosto os rostos
sinais transfigurados
essa luz vermelha sobre os cílios negros.
PARA O INCÊNDIO DA FESTA
Eis
a língua em fogo
o corpo e a terra o horizonte interno
a
pulsação das sílabas sobre a ferida ardente
o centro no
centro:
as mandíbulas libertas
para a livre manducação
e alguém diz
estamos na
terra
isto é um círculo
o
centro no centro
este é o espaço da festa e a ferida canta
a
voracidade limpa os últimos detritos
eu comerei o teu corpo:
este é o meu corpo, é o meu sangue
este é o teu corpo é o
teu sangue
O vento varre as vértebras a língua
canta
contra o mar
Quem tem uma laranja na boca é uma
laranja límpida
quem liberta o seu desejo sobre o centro
este
é o polvo das trevas e do sangue
Assim se abrem as
tenazes do tempo
Assim se estende o círculo da festa
Assim
se grita na nudez completa
Correr vertigem da brancura
escrever
a rapidez do corpo a rapidez da escrita
a boca
escreve com os dentes e a saliva
Claridade contra claridade boca
contra boca
a simplicidade existe na festa da folha sobre a
praia
Os corpos ardem a praia arde o papel arde
arde
esta boca estas palavras ardem
no
centro
do círculo da festa
Ardem os tentáculos do
polvo e arde a rosa
E se eu dissesse
a minúcia da
boca ou do minúsculo sexo
se atravessasse o papel com a nitidez
milimétrica
e a matéria branca
dos mil membros que se
enlaçam
se eu dissesse finalmente a origem de tudo
a
criação completa
Mas como romper este silêncio esta
mudez do silêncio
como descobrir essa outra língua sobre a
pedra
como sulcar esta outra terra interior
como descobrir
esse outro rosto do outro lado
como erigir o campo nestes campos
sombrios
obscuridade obscuridade mudez do silêncio cinza e
cinza
Sopro sobre a cinza
Se o cavalo surgisse da
incompleta boca
se o vulcão se abrisse eu escreveria o
fogo
Quem separou este silêncio da outra festa
Quem
desuniu os membros e as línguas enlaçadas
Haverá outro país
onde o silêncio reine?
Também aqui eu chamarei o
corpo
do silêncio
aqui onde as formas se formam
aqui
também procurarei o corpo do não-corpo
não se incendeia a
folha o mar é triste
Eu queria encontrar aqui ainda a
terra
e a chama
e a limpidez da simplicidade única
e
reunir-me no silêncio a uma boca silenciosa
Eu desejava o
centro e a festa na folhagem
mas estou submerso ou não
afundo-me ou levanto-me
Caminho através da não-verdade
Esta
palavra ou aquela uma palavra a mais
Eu não soube escutar-te eu
oiço-te eu pergunto
quem unirá o silêncio da terra
submersa
ao incêndio da festa à boca completa?
António Ramos Rosa in As Marcas no Deserto, Vega e António Ramos Rosa, 1980.