Ferreira Gullar
NO CORPO
De que vale tentar reconstruir com
palavras
o que o verão levou
entre nuvens e risos
junto
com o jornal velho pelos ares?
O sonho na boca, o incêndio
na cama.
o apelo na noite
agora são apenas esta
contração
(este clarão)
de maxilar dentro do rosto.
A poesia é
o presente.
NÃO HÁ VAGAS
O preço do feijão
não cabe no
poema. O preço
do arroz
não cabe no poema.
Não
cabem no poema o gás
a luz o telefone
a sonegação
do
leite
da carne
do açúcar
do pão
O
funcionário público
não cabe no poema
com seu salário
de fome
sua vida fechada
em arquivos.
Como não cabe
no poema
o operário
que esmerila seu dia de aço
e
carvão
nas oficinas escuras
- porque o poema,
senhores,
está fechado:
"não
há vagas"
Só cabe no poema
o homem sem
estômago
a mulher de nuvens
a fruta sem preço
O
poema, senhores,
não fede
nem cheira
TRADUZIR-SE
Uma parte de mim
é todo
mundo:
outra parte é ninguém:
fundo sem fundo.
Uma parte de mim
é multidão:
outra parte estranheza
e
solidão.
Uma parte de mim
pesa, pondera:
outra parte delira.
Uma parte de mim
almoça e janta:
outra parte
se
espanta.
Uma parte de mim
é permanente:
outra parte
se sabe
de repente.
Uma parte de mim
é só vertigem:
outra
parte,
linguagem.
Traduzir uma parte
na outra parte
– que é uma
questão
de vida ou morte –
será arte?
COMO DOIS E DOIS SÃO QUATRO
Como dois e dois são quatro
sei que a vida vale a
pena
embora o pão seja caro
e a liberdade pequena
Como teus olhos são claros
e a tua pele, morena
como é azul o oceano
e a lagoa, serena
como um tempo de alegria
por trás do terror me acena
e a noite carrega o dia
no seu colo de açucena
- sei que dois e dois são quatro
sei que a vida vale a pena
mesmo que o pão seja caro
e a liberdade, pequena.
MAIO 1964
Na leiteria a tarde se reparte
em iogurtes, coalhadas,
copos
de leite
e no meu espelho meu rosto. São
quatro
horas da tarde, em maio.
Tenho 33 anos e uma gastrite. Amo
a vida
que é cheia de
crianças, de flores
e mulheres, a vida,
esse direito de
estar no mundo,
ter dois pés e mãos, uma cara
e a fome de
tudo, a esperança.
Esse direito de todos
que nenhum
ato
institucional ou constitucional
pode cassar ou legar.
Mas quantos amigos presos!
quantos em cárceres escuros
onde
a tarde fede a urina e terror.
A POESIA
Onde está
a poesia? indaga-se
por toda parte. E a
poesia
vai à esquina comprar jornal.
Cientistas esquartejam Púchkin e Baudelaire.
Exegetas
desmontam a máquina da linguagem.
A poesia ri.
Baixa-se uma portaria: é proibido
misturar o poema com
Ipanema.
O poeta depõe no inquérito:
meu poema é puro,
flor
sem haste, juro!
Não tem passado nem futuro.
Não
sabe a fel nem sabe a mel:
é de papel.
OS MORTOS
Os mortos vêem o mundo
pelos olhos dos vivos
eventualmente
ouvem,
com nossos ouvidos,
certas sinfonias
algum
bater de portas,
ventanias
Ausentes
de corpo e
alma
misturam o seu ao nosso riso
se de fato
quando
vivos
acharam a mesma graça.
HOMEM COMUM
Sou um homem comum
de carne e de memória
de osso e
esquecimento.
Ando a pé, de ônibus, de táxi, de avião
e
a vida sopra dentro de mim
pânica
feito a chama de um
maçarico
e pode
subitamente
cessar.
Sou como você
feito de coisas lembradas
e
esquecidas
rostos e
mãos, o guarda-sol vermelho ao
meio-dia
em Pastos-Bons,
defuntas alegrias flores
passarinhos
facho de tarde luminosa
nomes que já nem sei
Ferreira Gullar in Toda Poesia, Companhia Das Letras, 2021.