António Barahona
FILME
para
Ruy Cinatti
No momento em que o galgo agarra a presa
senhor duque de Gândia fecha os olhos
Eternidade contemplada à pressa
À gandaia de graça inúmeros galgos
Em seu cavalos branco a princesa
esvelta sob o sol solta os cabelos
À rédea solta não hesita presa
do galgo que cavalga os seus desejos
Nesta cena de caça com sonoras
trompas, ecos toantes com bandeiras,
o poeta destoa sobre a égua nua:
Desanca-a e fere-a com mil esporas
ante o abismo rasgado plas roseiras
ao rés do altar do Santo que flutua
POÉTICA EXAUSTIVA
À tua despedida, com a letra mais escassa
enchia páginas e páginas, insone,
- a minha liberdade pra matar a fome -
porque nem só de pão o homem vive, sim:
simples caligrafia o mantém de pé
ou inclinado para o canto que não dorme
"De ti só ficará grande alegria,
um monte de papel, amores e teologia"
SONETO
à
memória de José Escada
Na manhã ressacada eram nuvens que da água
em papel recortado
emergiam na direcção do tecto que transbordava
do teu éter, cabelo branco e chapéu-toutinegra
por subidas e descidas súbitas
do polén: um airoso revérbero na cumeada
da cidade lisérgica ameaçava ruína
Via-te passar só às noites, com a tua paleta,
uma das maiores do século e da cinza:
fénis sonâmbula, ex-apostólica mas nãp menos
ortodoxa, sinceramente com o peso dos dez dedos
na tua mão leal estendida ao amigo ou à tela
espontânea
em poema de morte viva a tua alma
EPITÁFIO
Depois de morto a todos agradeço
Embora ressentido não lamento
por ficar muitas vezes sem almoço
Pior, pior de tudo foi ter sido
par de Camões que continua vivo
só pele e canto ossificado em espanto
BUGIO
Por estas praias os teu olhos vejo
em pranto a colorir o mar esmaltado
onde te perdes no fumo do navio
meu anjo desgarrado ainda em feto
LUGARANJO
numa
carta para Raul de Carvalho
"Todo o Anjo é terrível"
disse Rilke e eu
acrescento: tão terrível
que aprisiona ao Lugar
Coimbra,
21.III.78
*
NA VISÃO que cega o poeta abranda ou
acelera o fluxo das linhas de fuga
que no rizoma ecoa
*
PROCURO tornar-me num monstro pra morrer só
De outro modo não teria olhado para ti
O abismo onde as crianças gostam de subir
António Barahona in Rizoma, Guimarães, 1983.