Edmond Jabès

O Eclipse


Com a mão cobriste o rosto.
A noite entrou no dia.

“Deus: defunto livro no livro livre de fogo”, dizia ele.

Oh, morte, astro ocultado que um círculo de aurora ainda
cerca.
Oh, naufrágio, oh, sol, presa complacente da tinta pos-
sessiva com que tudo se escreve.
Enfeita-se a eternidade com seus próprios reflexos, quartzo
negro que o instante quadricula.

Argola do convés: começada, a viagem.
Argola da muralha: atestado, o regresso.

Todo o livro é um livro de bordo.


A Máscara e os Dias


I

Não se constrói sobre a pedra côncava. (E menos ainda sobre a neve dos picos?)

As recordações vêm aumentar o seu poder sobre o homem à medida que o objectivo se esfuma.

(Muralhas de sempiternas manifestações de força. Basta a obstinação de uma lágrima, basta um nada de ar decidido para que o ferimento seja mortal.)

Amanhã é o dia dos ladrões.

Dos nossos múltiplos rostos, o único persiste; rochedo onde se apoia a fadiga do mar.


II

O porto mantém a sua palavra. (Manterá o cinto dos afogados?)

Na beira do abismo, cintilante coroa do exílio.

Os mortos participam conosco na eclosão dos enigmas em garfo que arranham o espaço.



Metamorfose da Matéria


Um homem levanta a terra nas feiras.

(O suor, gota a gota, formou um lago em que, veladores do passado, se miram os choupos avarentos.)

As mulheres animam os baloiços. (O céu é só um roçagar de saias ao vento, perturbantes feixes de carne.)

O coração é um arco no limiar da nossa era, uma concha eloquente (para si mesma) entre os dedos da vidente.

Os altifalantes disputam entre si um universo insólito de música e de gritos onde a voz humana confessa um humilhante fracasso.

Espectacular luta de galos da violação e do vazio.

Uma luz reflectida conta as pérolas amarelas do seu colar.

A rua é um fiozinho de sangue. Mas quem o deterá no seu desejo obstinado de saciar os desertos?



Origem da Raça


A testa era uma húmida paciência; os olhos, um desejo exacerbado; os pés, as mãos, a aventura desperta de um homem.

(Do seu país distante, os astros tinham vindo a formar o cortejo majestoso dos séculos reencontrados.)

Das raízes ao fruto, as têmporas verdejam, doiram-se as sobrancelhas.

O tempo era o ramo de rosas de Natal, era a pegada, junto ao mar, dos nossos corpos enredados.




Edmond Jabès in A Obscura Palavra do Deserto, 1991.
Selecção e Tradução de Pedro Tamen.