Manuel Bandeira
VOU-ME EMBORA PARA PASÁRGADA
Vou-me embora pra Pasárgada
Lá sou amigo do rei
Lá
tenho a mulher que eu quero
Na cama que escolherei
Vou-me embora pra Pasárgada
Vou-me embora pra Pasárgada
Aqui
eu não sou feliz
Lá a existência é uma aventura
De tal
modo inconsequente
Que Joana a Louca de Espanha
Rainha e
falsa demente
Vem a ser contraparente
Da nora que nunca
tive
E como farei ginástica
Andarei de bicicleta
Montarei em
burro brabo
Subirei no pau-de-sebo
Tomarei banhos de mar!
E
quando estiver cansado
Deito na beira do rio
Mando chamar a
mãe-d’água
Pra me contar as histórias
Que no tempo de
eu menino
Rosa vinha me contar
Vou-me embora pra Pasárgada
Em Pasárgada tem tudo
É outra civilização
Tem um
processo seguro
De impedir a concepção
Tem telefone
automático
Tem alcaloide à vontade
Tem prostitutas
bonitas
Para a gente namorar
E quando eu estiver mais triste
Mas triste de não ter
jeito
Quando de noite me der
Vontade de me matar
—
Lá sou amigo do rei —
Terei a mulher que eu quero
Na
cama que escolherei
Vou-me embora pra Pasárgada.
POÉTICA
Estou farto do lirismo comedido
Do lirismo bem comportado
Do
lirismo funcionário público com livro de ponto expediente
protocolo
e manifestações de apreço ao Sr. Diretor.
Estou farto do
lirismo que pára e vai averiguar no dicionário o
cunho
vernáculo de um vocábulo.
Abaixo os puristas
Todas as palavras sobretudo os barbarismos universais
Todas
as construções sobretudo as sintaxes de excepção
Todos os
ritmos sobretudo os inumeráveis
Estou farto do lirismo namorador
Político
Raquítico
Sifilítico
De
todo lirismo que capitula ao que quer que seja fora
de si
mesmo
De resto não é lirismo
Será contabilidade tabela
de co-senos secretário
do amante exemplar com cem modelos de
cartas
e as diferentes maneiras de agradar às mulheres, etc.
Quero antes o lirismo dos loucos
O lirismo dos bêbados
O
lirismo difícil e pungente dos bêbedos
O lirismo dos clowns de
Shakespeare
– Não quero mais saber do lirismo que não é libertação.
O ÚLTIMO POEMA
Assim eu queria o meu último poema
Que fosse terno dizendo
as coisas mais simples e menos intencionais
Que fosse ardente
como um soluço sem lágrimas
Que tivesse a beleza das flores
quase sem perfume
A pureza da chama em que se consomem os
diamantes mais límpidos
A paixão dos suicidas que se matam sem
explicação.
ARTE DE AMAR
Se queres sentir a felicidade de amar, esquece a tua alma.
A
alma é que estraga o amor.
Só em Deus ela pode encontrar
satisfação.
Não noutra alma.
Só em Deus – ou fora do
mundo.
As almas são incomunicáveis.
Deixa o
teu corpo entender-se com outro corpo.
Porque os corpos se
entendem, mas as almas não.
OS SAPOS
Enfunando os papos,
Saem da penumbra,
Aos pulos, os
sapos.
A luz os deslumbra.
Em ronco que aterra,
Berra o sapo-boi:
- "Meu pai
foi à guerra!"
- "Não foi!" - "Foi!"
- "Não foi!".
O sapo-tanoeiro,
Parnasiano aguado,
Diz: - "Meu
cancioneiro
É bem martelado.
Vede como primo
Em comer os hiatos!
Que arte! E nunca
rimo
Os termos cognatos.
O meu verso é bom
Frumento sem joio.
Faço rimas
com
Consoantes de apoio.
Vai por cinquenta anos
Que lhes dei a norma:
Reduzi sem
danos
A fôrmas a forma.
Clame a saparia
Em críticas céticas:
Não há mais
poesia,
Mas há artes poéticas..."
Urra o sapo-boi:
- "Meu pai foi rei!"- "Foi!"
-
"Não foi!" - "Foi!" - "Não foi!".
Brada em um assomo
O sapo-tanoeiro:
- A grande arte é
como
Lavor de joalheiro.
Ou bem de estatuário.
Tudo quanto é belo,
Tudo quanto
é vário,
Canta no martelo".
Outros, sapos-pipas
(Um mal em si cabe),
Falam pelas
tripas,
- "Sei!" - "Não sabe!" - "Sabe!".
Longe dessa grita,
Lá onde mais densa
A noite
infinita
Veste a sombra imensa;
Lá, fugido ao mundo,
Sem glória, sem fé,
No perau
profundo
E solitário, é
Que soluças tu,
Transido de frio,
Sapo-cururu
Da
beira do rio…
Manuel Bandeira in Poesia Completa e Prosa, Nova Aguilar, 1990.