Ruy Cinatti
CRIAÇÃO
Poema só de longe em longe quando
a morte vem e o seu afago
solene desce
e for silêncio.
Quando auricular como um desvio
ou gota d'água,
perpasse de asas,
ruído
mas de mar fundo.
Poema só de longe em longe quando
a sua altura
for de homem
e virulento,
mas que abençoe
rubor na face
igual ao frio
vertente.
Quando
premente como um parto
e natural - veículo
confidente, aresta que me rasga frente a frente,
tacto.
De quando em quando acordo.
Medeio séculos.
Capto eternidade.
CONDICIONALISMO
ANÍMICO
Os extremos tocam-se.
O amor sofre
o poder da imagem:
coral-silêncio, mulher debruçada
num parapeito,
crianças saltando descuidadas
futuros abismos,
adolescentes-velhos inquietos
cães vadios,
coisas mais que eu não invento.
Posso igualá-los simulado
numa chama que se une a outra?!
O amor que me toca é vulnerável,
roça num esqueleto
tenso ao apelo humano.
Tenso, o meu poema.
HISTÓRIA
Os mortos mandam. Deles, a face lisa
pensa na memória. Outros
consignam-se a lugares, a factos:
uma família pousa para a história;
um indivíduo para a eternidade.
Não sinto o que me dizem. Ouço
vozes discretas, quase com saudade.
Um deles afirma: sou! Repenso a origem.
O que ele afirma pode ser verdade.
Confirmação, ou não, só não disfarço
o arripio que por mim perpassa.
Os mortos mandam. Os mortos têm vida.
O que neles cessa, clama liberdade.
PRINCÍPIO
E FUNDAMENTO
Quem rega com amor não morre.
Rebentam flores.
Os frutos esplendem.
Rompe a semente
tecido vivo.
Quem rega com amor não morre.
Conhece o início
e os fins do tempo.
Quem rega com amor não morre.
Adianta-se à terra
e serve.
Ruy Cinatti in Corpo-Alma, Presença, 1994.