Arthur Rimbaud

Vogais


A negro, E branco, I vermelho, U verde, O azul:
Das vogais direi um dia os partos latentes:
A, veloso corpete negro das luzentes
Moscas que rondam fétido e cruel paul,

Golfos de sombra: E, canduras de fumo e tendas,
Lanças de altivos gelos, reis brancos, tremor
De umbela; I, púrpuras, cuspo e sangue, furor
No riso dos lábios belos, ébrias emendas;

U, ciclos, vibrações divinas dos virentes
Mares, paz de pastos e gados, das pacientes
Rugas que a alquimia imprime em sábios sobrolhos;

O, Clarim supremo de estranhos gritos fundos,
Silêncios cruzados por Anjos e por Mundos:
– O de Ómega, raio violeta dos Seus Olhos!



Sensação


Mordido pelo trigo, em noite azul de estio,
Irei pelos atalhos onde a erva cresça:
Sonhador, a meus pés hei-de sentir-lhe o frio.
Deixarei o vento banhar minha cabeça.

Eu não hei-de falar, eu não hei-de pensar:
O amor infinito em minh’alma se há-de erguer,
Natureza adentro bem longe hei-de avançar,
Boémio, – feliz como quem leva mulher.




Arthur Rimbaud in 35 Poemas de Rimbaud, 1991.
Tradução de Gaetan Martins de Oliveira.




O Barco Bêbado


Como eu já descesse Rios impassíveis,
Não mais fui guiado pelos sirgadores;
Índios a gritar matavam-nos, visíveis
E amarrados, nus, a postes de cores.

Eram-me indiferentes quaisquer equipagens,
Se trigo eu levava ou algodão inglês.
Com elas se foram os clamores selvagens,
Deixaram-me os Rios descê-los de vez.

No marulho em fúria daquela maré,
Mais duro de ouvido que meninos maus,
Corri! E penínsulas soltas vogaram até
Não sofrerem mais que triunfantes caos.

O furacão benzeu minhas alvas marítimas.
Mais leve do que a rolha dancei entre águas
Que levavam com elas, dizem, para sempre as vítimas,
Dez noites, sem que um olhar chore o farol das mágoas!

Mais doce que à criança as ácidas maçãs,
De água verde se inundava o meu casco de pinho
E nódoas de vinho azuis e vomições malsãs
Me lavou levando, âncora e leme, de caminho.

E desde logo fui banhando dentro deste Poema
De mar, infuso em estrelas, e tão latescente,
Devorador da imensa lazulita verde; onde, suprema,
Flutua uma afogada forma às vezes descendente;

Onde, a tingir azuis de súbito, delírios
E ritmos lentos à rutilação de alvores,
Mais fortes do que o álcool, do que as nossas liras,
Fermenta o ruivo amargo de todos os amores!

Eu vi céus explosivos de relâmpagos, as trombas,
Ressacas e correntes; o entardecer,
E a Aurora alvoraçada em povo de pombas,
Dei-me a ver por vezes o que um homem julga ver!

Vi o sol baixo, manchado de místicos horrores,
A iluminar de roxo enormes filamentos,
Parecidas, nos dramas antigos ao jogo dos actores,
Vagas que rolam, acolá, nos seus estremecimentos!

Desejei a noite verde com neves deslumbradas,
Beijo que subia aos olhos deste mar, dolente,
A circulação das seivas de todo inesperadas,
O fósforo cantor, de amarelo e azul nascente.

Meses e meses segui, velhacaria
Histérica, a onda que assalta recifes solares,
Sem antever os pés luzentes de Maria
Que dobram a cerviz a ofegantes mares!

Sabei que bati por inauditas Floridas
Onde há peles de homem e panteras de olhar estranho
Entre as flores! Tensos arco-íris atirados como bridas
Ao além dos mares, e ao gláucio rebanho!

Vi fermentarem desmedidos pântanos, armadilhas
Onde um Leviatã apodrece no meio dos juncais!
Um desabar de águas entre calmarias,
Lonjuras em cascata por abismos fatais!

Glaciares, sóis de prata, ondas de nácar, céus de brasa!
Feios naufrágios em golfos de negrume
Onde as serpentes que o percevejo arrasa,
De árvores retorcidas caem com negro perfume!

Quem me dera se às crianças mostrasse eu douradas
Da onda azul, peixes de ouro e essoutros cantantes.
– Espumas de flor me embalaram as largadas,
Inefáveis ventos deram-me asas por instantes.

Por vezes, mártir, exausto de polos e procelas,
Amaciando o soluço ao andar da minha nave
Flores de sombra me trazia o mar, com ventosas amarelas
E eu mulher feito ficava ajoelhada e grave…

Península, que a meu bordo baloiçava discussões,
Excrementos de aves belicosas e muito louro olhar,
Eu vogava e os cadáveres, entre minhas ilusões
Desciam lassos para dormir, a recuar…

E assim barco perdido entre cabelos de angras,
Que o tufão jogava inteiro a um véu de mágoas,
Eu, a quem os Monitores e os veleiros de Hansas
Jamais pescariam, carcaça podre embriagada de águas;

Livre e fumante, afagado em brumas violetas,
Eu, que o céu rasgava enrubescido como um muro
Que tivesse, mistela ideal para bons poetas,
Líquenes de sol e um ranho de azul puro;

Que voava, manchado de lúnulas acesas,
Tábua louca, escoltada a hipocampos cor de lama,
Quando julhos sumiam a pancadas tesas
Céus ultramarinos por crateras em chama;

Que assustado ouvi gemer a cinquenta léguas,
O cio dos Beemotes, Maelstroms em batalha,
Um azul imóvel teço eu, sem pedir tréguas,
Chorando aquela Europa de antiga muralha!

Que arquipélagos siderais eu vi! Ilhas
Com céus abertos em delírio ao viajador:
– Nessas noites sem fundo é que a dormir te exilas,
Milhão de aves de ouro, futuro Vigor?

Na verdade o que chorei! E a Aurora tão azeda.
E que atroz a lua, e todo o sol que amargo:
O ocre amor encheu-me de um sono que embebeda.
Que a minha quilha estoire! Que eu soçobre no mar largo!

Água de Europa eu deseje, e será charco
Escuro e frio onde, em crepuscular desmaio,
Um agachado e tristíssimo menino um barco
Lance, efémero como a borboleta em maio.

Já não posso, onda, molhada por tuas canseiras,
Raptar a esteira ao condutor de algodões,
Nem trespassar orgulhos de chama e de bandeiras,
Ou ir nadando à vista tenebrosa dos pontões.




Jean-Arthur Rimbaud in O Barco Bêbado, ed. 1985.
Tradução de Pedro José Leal.