Elizabeth Bishop


ARGUMENTO


Os dias que não te podem ou poderão aproximar,
A distância tentando parecer
algo de mais obstinado,
argumentam argumentam argumentam comigo
infinitamente
sem provar que és menos desejado ou
menos querido.

Distância: Lembras-te de toda essa terra sob o avião;
esse litoral
de escuras praias no fundo da areia
estendendo-se indistintamente
por todo o caminho,
todo o caminho até onde as minhas razões terminam?

Dias: E pensa
em todos esses confusos instrumentos,
um em cada facto,
cancelando a experiência um do outro;
como se pareceram
com um qualquer medonho calendário
"Cumprimentos de Nunca & Sempre, Inc."

O som intimidante
dessas vozes que
separadamente encontraremos
pode e deve ser vencido:
Dias e Distância se confundiram de novo
e partiram...



ANÁFORA


Cada dia com tanta cerimónia
começa, com pássaros, com sinos,
com apitos de fábrica;
tantos céus de ouro branco que nossos olhos
em primeira mão abrem, tais paredes brilhantes
que por um momento nos interrogamos
"De onde vem a música, a energia?
O dia foi criado para que qualquer inefável criatura
perdessemos?" Oh prontamente
aparece e assume a sua natureza terrena
      e logo, logo cai
      vítima de uma longa intriga,
      assumindo a memória e a mortal
      fadiga de morte.

Mais lentamente caindo à vista de todos
e derramando-se em pontilhados rostos,
escurecendo, condensando toda a sua luz;
apesar de todos os sonhos
se dissiparem em si com esse olhar,
sofre os nossos usos e abusos,
naufraga na deriva dos corpos,
naufraga na deriva de classes
à noite para o mendigo no parque
que, cansado, sem lâmpada ou livro
      prepara prodigiosos estudos:
      o ardente evento
      de cada dia numa infinita
      aceitação infinita.



PARA SER ESCRITO A CAL NUM ESPELHO


Vivo somente aqui, entre ti e os teus olhos,
Mas vivo no teu mundo. Que faço eu?
- Cobro sem juros - caso contrário, o que faria;
Mormente, não sou esse homem de olhar fixo.



INSÓNIA


No espelho do toucador a lua
cuida de um milhão de milhas
(talvez tenha orgulho em si mesma,
mas nunca, nunca sorri)
está longe e além do sono, ou
talvez durma durante o dia.

Através do Universo vagueia,
dir-lhe-á que vá para o inferno,
e encontraria um corpo de água,
ou um espelho onde habitar.
Embrulha-o numa teia de aranha
e deita-o a um poço

para esse mundo invertido
onde esquerda é sempre direita,
onde as sombras são realmente o corpo,
onde acordados estamos a noite inteira,
onde os céus são rasos como o mar

profundo agora, e tu me amas.



UMA  ARTE


A arte de perder não é difícil de dominar;
tantas coisas há que parecem ter a intenção
de se perder que a perda não é um desastre,

Perde algo todos os dias. Aceita a agitação
das chaves da porta perdidas, a hora mal gasta.
A arte de perder não é difícil de dominar.

Então pratica perder ainda mais, perder mais rápido:
lugares, e nomes, e a onde pretendeste
viajar. Nada disso trará algum desastre.

Perdi o relógio da minha mãe. E olha! A minha última, 

ou a penúltima de três casas amadas se foi.

A arte de perder não é difícil de dominar.

Perdi duas cidades, belas. E, ainda mais,
alguns campos que possuía, dois rios, um continente.
Sinto-lhes a falta, mas não foi um desastre.

- Mesmo perdendo-te (a voz jocosa, um gesto
de amor) não teria mentido. É evidente que
a arte de perder não é muito difícil de dominar
embora possa parecer (Escreve!) um desastre.



ESTOU A NECESSITAR DE MÚSICA


Estou a necessitar de uma música que flua
Sobre os meus dedos inquietos, sensíveis,
Sobre os meus lábios trémulos, pintados de amargura,
Com uma melodia, clara, profunda, vagarosa e líquida.
Oh, um embalo que cure, antigo, quase inaudível
De alguma canção que acalme os mortos exaustos,
Uma canção para cair como água sobre a minha cabeça,
E os membros trémulos, um sonho corado que brilhe!

Existe uma magia fabricada pela melodia:
Um tempo de descanso, respiração tranquila e frescura
Um coração, que se afunda através de cores esbatidas, cavadas
Até à quietude submersa do mar,
E que sempre flutua num lago verde-lua,
Guardado nos braços do ritmo e do sono.



CASABIANCA


O amor é o menino que estava no convés em chamas
tentando recitar '"O menino ficou de pé
no convés em chamas." O amor é a criança
que ficou balbuciando a elocução
quando o pobre navio em chamas se afundava.

O amor é o menino obstinado, o navio,
até mesmo os marinheiros que sabem nadar,
gostariam de uma plataforma de sala de aula
ou de uma pretexto para permanecer
no convés. E o amor é o menino que arde.



O ICEBERG IMAGINÁRIO


Preferimos ter o icebergue do que o navio,
ainda que significasse o fim da viagem.
Ainda que imóvel como uma rocha nublada
e todo o mar fosse mármore em movimento.
Preferimos ter o icebergue do que o navio;
preferimos possuir essa planície de neve que respira
ainda que as velas estivessem erguidas sobre o mar
como a neve edificada jaz sobre a água.
Ó solene campo flutuante,
tens consciência de que um icebergue descansa
contigo, e quando acordar pode pastorear em tuas neves?

Esta é a cena pela que um marinheiro daria os seus olhos.
O navio é ignorado. O icebergue sobe
e de novo se afunda; os seus pináculos vítreos
são elípticas perfeitas no céu.
Esta é a cena onde aquele que pisa as tábuas
é ingenuamente retórico. A cortina
é leve o suficiente para subir em cordas mais finas
que as arejadas piruetas da neve lhe dão.
A inteligência desses picos brancos
luta contra o sol. O seu peso o icebergue ousa,
sobre um palco mutável, afrontar e levantar.

O icebergue corta a suas facetas por dentro.
Como jóias de um túmulo
salva-se perpetuamente e adorna-se
somente a si, talvez com as neves
que tanto nos surpreendem deitadas no mar.
Adeus, dizemos, adeus, o navio parte
onde as ondas cedem às ondas umas às outras
e as nuvens correm num céu mais ardente.
Os icebergues convivem com a alma
(sendo ambos gerados por si desde elementos menos visíveis)
para que se mostrem: carnudos, justos, erectos, indivisíveis.



 CONVITE À MENINA MARIANNE MOORE


De Brooklyn, pela Ponte do Brooklyn, nesta bela manhã,
     vem, por favor, voando.
Numa nuvem de produtos químicos ardentes e pálidos
     vem, por favor, voando,
no veloz rufar de milhares de pequenos tambores azuis
descendo do céu a cavalo
sobre a brilhante arquibancada da água do porto,
     vem, por favor, voando.

Soam apitos, flâmulas e fumaça. Os navios
estão a acenar cordiais com multidões
de bandeiras
subindo e descendo como pássaros no porto.
Vem: dois rios, conduzindo graciosamente
incontáveis ​​pelúcidas geleias
em centros de mesa de vidro lapidado com correntes de prata.
O voo é seguro; o tempo está de feição.
As ondas correm em versos nesta bela manhã.
     Vem, por favor, voando.
Vem com a ponta de cada sapato preto
arrastando um fivela de safira,
com uma capa preta de asas de borboleta
e observações pertinentes,
com o céu sabe quantos anjos cavalgando
na imensa aba negra do teu chapéu,
     vem, por favor, voando.

Carregando um ábaco musical inaudível,
uma leve carranca de censura e fitas azuis,
     vem, por favor, voando.
Factos e arranha-céus brilham na maré;  Manhattan
inunda-se de moral nesta bela manhã,
     vem, então, por favor, voando.

Subindo ao céu com natural heroísmo,
acima dos acidentes, acima dos perversos filmes,
os táxis e injustiças em geral,
enquanto as buzinas soam em teus belos ouvidos
que simultaneamente ouvem
uma música suave e natural, propícia ao cervo almiscarado,
     vem, por favor, voando.

Para quem os sombrios museus serão
como corteses pássaros machos,
para quem os gentis leões estão à espera
na escadaria da Biblioteca Pública,
ansiosos por subir e seguir pelas portas
para as salas de leitura,
      vem, por favor, voando.
Podemos sentar-nos e chorar;  podemos ir às compras,
ou brincar a um jogo em que se erra sempre
com um conjunto principesco de vocábulos,
ou corajosas podemos lamentar-nos, mas por favor,
     vem, por favor, voando.


Com dinastias de construções negativas
escurecendo e morrendo em teu redor,
com a gramática que de repente muda e brilha
como bandos de maçaricos voando,
     vem, por favor, voando.

Vem como uma luz num branco céu de cavalas,
vem como um cometa diurno
com um longo e nebuloso trem de palavras,
de Brooklyn, sobre a ponte de Brooklyn, nesta bela manhã,
     vem, por favor, voando.




Elizabeth Bishop in Poems, Poemhunter, The World's Poetry Archive, 2004.
Versão Portuguesa de Luísa Vinuesa.

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