Ricardo Carvalho Calero

 

I


1


Amigo, sem necessidade

de refrám nem paralelismo,

direi a minha angústia e menos o meu gozo.

Como cando eu vestia o brial da brancura,

coberta hoje de púrpura ou despida,

elevo a minha voz como umha pomba ou lóia

no amanhecer ferido polo lume do amor.

ou co chumbo na asa da areia estrelecida.

Amigo, já nom cavalgas

para a fronteira cando vem o maio,

nem eu teço já a trança dos meús dias de ausência

com báguas de amargura resignada,

dogal dos meus suspiros no teu colo

que os meus braços nom premem.

Voando vás ao longe, vés num voo,

beijas-me por teléfono,

acendes-me as entranhas cabogramicamente.

Eu monto a égua apocalíptica

da liberdade de ventas fumegantes,

e a minha boca é doce e azeda a um tempo,

madurada em fatal celme de pressa e fogo.

Amigo, talvez és

plural e intermitente,

fragmentário e efémero.

E eu som eterna e múltipla,

moribunda e incólume.

Fumando as horas de violento pulso,

batendo cos meus calcanhares as ilhargas da vida,

galopo contra ti ou fujo-te, cantando


sem leixa-prem nem dobre,

agora feliz morte, magoado nacimento

agora, alegre pranto, duro riso,

eu, voz em viva carne, dor e gozo, cantando

o teu amor, amigo.


4


Comprende-me. Nom podo. Impossível, com estas

cadeias de. ouro, ou prata, ou cobre, que me cingem

e me impedem chegar-me a ti. Nom creias

que nom te quero, nom. Pouco quiçá. Mas quero-te.

No entanto, estas prisons dam-me seguridade.

Nom as romperei. Som cobarde, débil, frouxa.

Sonho às vezes contigo. Demasiado burguesa,

mesocrata davondo para dizer-cho, calo.

Mas é assi, ainda que nunca serei, coma ti, tola

davondo para pôr tanto bem em perigo.

Sonho às vezes contigo. Sonho que

te quero mais do que te quero, e nada

couta a minha vontade: cobre, prata, ouro, honor.

Mas som só sonhos. Ti podes sonhar

que nom som sonhos, ou que estou disposta

a saltar dos meus sonhos à tua vida, rompendo

as cadeias. Mas nom as romperei.

Nom me atrevo a querer-te mais que um pouco. Resigna-te.

Podes sonhar comigo, sonhar todo o que queiras;

mesmo que deixo um dia o leito no cal sonho

contigo, para entrar no leito em que ti sonhas

comigo. Mas nom o farei. No entanto,

dou-che permisso para sonhare􀊺 isso.

Vive, pois, na esperança

de que esse sonho vida chegue a ser.

E se morres sonhando, que é a vida senom sonho?


II


2


Empurrou-me contra a parede.

Senhores, bem podem comprender

que nom devo dar-lhes detalhes

da sua conduta e a minha reacçom.

Por favor, nom quero contar-lhes

umha história licenciosa,

nem mereço ser menosprezada

porque a embriaguez me dominasse.

A felicidade daquel intre

nom lhe-la podo descrever.

Nunca sentira o que sentim entom,

nem ia senti-lo depois.

Muitos anos já transcorrerom,

muitos anos hai que nom vejo

aquel que foi uno comigo

a.quela noite clara como o dia.

Nunca mais sentim a embriaguez e o enlevo

que me perpassou aquela noite.

Senhores, tenham caridade ao julgar-me

no meu prazer e a minha dor.


9


Se me coseu o corpo com treze punhaladas,

é que estava esgaçado o seu coraçom.

Ninguém chorou por mim báguas mais ardentes.

Se eu voltasse a viver, seria-lhe fiel.

Ao dar-me a morte com tam louco assanho,

demonstrou-me que me queria com loucura.

Em vida fum a sua amante, mas, volúvel ou frívola,

outros braços amiúde me agarimavam.

Nunca crim que o tomasse tam a peito.

Agora sei que ninguém me quijo

como el, e arrependo-me de nom lhe ter guardado

a lealdade devida. Querido assassino,

desde a tumba pido-che perdom,

e clamo o meu amor por ti, ainda que póstumo,

oh meu bem, polas bocas acesas

das treze feridas com que me mataste,

treze pontadas com que me coseste

eternamente -tardiamente!- a ti.


III


4


Johann Chrysostomos Wolfgang Theophilus Amadeus Mozart

media um metro cinqüenta e oito centímetros de estatura

-ainda que o sistema decimal

nom estava naquel tempo inventado.

Eu, Constança Mozart, nada Weber,

casei com el em Santo Estevam de Viena

o catro de agosto de mil setecentos e oitenta e dous,

cando eu tinha dezoito anos de idade

e el vinte e seis.

Fum a sua mulher durante nove anos;

dei-lhe seis filhos,

dos quais somente dous lhe sobreviverom.

Ainda que nom mui ordenada,

e algo deficiente como administradora,

fum umha companheira leal e carinhosa.

Às vezes carecíamos de lenha para acender a chaminé,

porque nem el nem eu sabíamos muito de economia;

mas entom, dando voltas de valsa polo quarto,

combatíamos o frio invernal.

Fum umha boa esposa e fixem-no feliz

na medida em que o pode ser um grande home.

Porque era um grande home,

apesar da sua pequena talha.

E amou-me de verdade, como o provam

o trilhom noventa e cinco mil sessenta milhons

catrocentos e trinta e sete mil oitenta e dous beijos

que me envio numha só carta, que conservo,

escrita do seu próprio punho e letra.

Faleceu o cinco de Dezembro de mil setecentos e noventa e um.

Espero que volvamos a ver-nos.

Deus tenha piedade da sua alma.


5


Som Mistress Strauss. Viajava no Titanic.

Entre Shouthamptom e Nova Iorque vive

a morte branca dentro da noite negra.

Duas mil duascentas vinte e catro pessoas

a bordo íamos. Águas de Terranova.

Wall Street brilhava na coberta. As fortunas

mais fabulosas de América. John Jacob

Astor, setenta e cinco milhons de dólares,

que hoje, em mil novecentos e oitenta

e cinco -já setenta e três passados-,

ano em que se publica esta mensagem,

seriam setenta e cinco mil milhons.

Entre a passagem, os dez homes mais ricos

de Norteamérica. O mundo das finanças,

dos caminhos de ferro, a minaria,

a política, os grandes armazéns.

O meu marido, Isidor, entre eles.

A meia-noite do catorze de Abril

de mil novecentos e doze, a crise.

Som Mistress Strauss. Viajava no Titanic.

Co meu marido umha valsa dançava.

A grande festa ficou interrompida

cando soou da morte o branco tumbo.

Mister Smith, mui experto capitám,

deu as suas ordens, e botarom-se à àgua

os botes cos meninhos e as mulheres.

Sobre a coberta ficavam os homes.

Mister Strauss entre eles. Eu dispunha

de umha praça num bote. Refuguei-na.

Ubi tu Caius·ego Caia. Morrer

com el melhor que sem el me salvar.

Nom nos afastarám vida nem morte.

Colhim-me do seu braço, e vim fugir

os botes entre prantos e bengalas.

Mister Smith dera instruçons à orquestra

de que tocasse Near to you, my Lord.

E silenciosamente o escuitamos.

Já nom havia mais botes. O buque

começou a afundir-se. Eu oprimim

coa minha mam esquerda o antebraço

direito de Mister Strauss. Esperámos

sem dizer cousa. E fomo-nos a pique.

Umha grande explosom: a labareda.

Agora os dous jazemos, limpos ossos,

do mar no fundo, marido e mulher.


Som Mistress Strauss. Viajava no Titanic.


IV


3


Se A valon é a Ilha das Maçás,

eu quero ir a Avalon, e dormir esperando-te

todo o tempo preciso, para que me ofereças

algumha noite o fruto que me negas agora.

Recuperada a tua alma de fada,

hás-me tratar com magnanimidade,

e dormirás comigo sob a maceira

paradisíaca, sem medo à repressom

de invejosas potências ou ciumosos poderes.

Será um sonho gentil, sem mágoa, sem remorsos.

Um sonho como a vida, como a morte.

Por isso eu quero ir a Avalon, a Ilha

das Fadas e as Maçás.


4


Calquer lugar é bom para morrer

Nom se distingue o home da mulher.

A morte é neutra -das Tod- em alemám.

Género e sexo nom sempre vam da mam.

Pois- umha cousa é a anatomia

e outra a gramática -falaz dicotomia.

Nom vejo a morte feminista ser.

Calquer lugar é bom para morrer.


Donas do tempo passado ou do actual,

a morte a todas trata-vos igual

que aos cavaleiros. Violenta, a história o di.

Muitas mulheres morrerom assi.

Em Rouen foi Joana d' Arco queimada;

Antoinette em Paris guilhotinada;

em Chappaquiddick, Jo foi perecer.

Calquer lugar é bom para morrer.


Eis umha flor para o lume e o mar,

a praça, o paço ou calquer lugar

onde a mulher tenha o seu passamento.

Erga-se a rosa sobre o moimento.

Nesta matéria nom é discriminada.

Inês ferida, Mariana agarrotada,

Mary Jo sulagada, Jeanne a arder.

Calquer lugar é bom para morrer.


VI


5


Água e carbono é o teu corpo, sal

precipitado en pousos na tua vida.

Comungo a tua forma corporal,

que a inextinguível sede me convida.


Na tua realidade está o ideal.

Caiu-che a roupa aos pés e estás despida.

Ignorante do bem como do mal.

Perdido Paraíso, Eva proibida.


Se à tua química orgânica me aferro,

mecânica do lume e do suspiro,

som aluno de física integral.


No cárcere sem luz do meu desterro,

no ar desenxabido que respiro,

água e carbono é o teu corpo, sal.


VII


1


Pintura abstracta, música concreta.

O mundo é velho e quer nacer cadora.

Pueril desejo de um caduco esteta

que nom sabe que o hoje é sempre agora.


Recolhe a esmola o céu na sua boeta,

mas nom celebra a missa que se implora.

Outro é o protocolo, outra a etiqueta

a que se ajusta a sua lei embora.


Este ajôujere vam, em vam procura

conduzir a sua própria singradura

polo mar da beleza desejada.


Sobre o mar está o céu inassequível

que esculpe e tinge a onda irredutível

ao leme da corveta desnortada.


3


Mas este coraçom aprende pouco,

como nom seja a registar loucuras;

nom a prevê-las e evitá-las. Duras

fidelidades de um notário louco.


A latejar calhado num salouco,

jazes caído em brêtemas escuras,

e vês da tua história as singraduras;

mas sem poder erguer-te do cabouco.


Um de ti espectador diafanamente

espelha os trancos que te conduzirom

a cair nesta foja torpemente.


Outro reitera os dias que fugirom.

Entre cego caminhas e vidente.

Mas nada aprendes do que os olhos virom.


VIII


1


Já que viver feliz foi impossível,

sequer morrer feliz se cadra é sonho?

Ante que juiz, que instância e a que nível

há de ver-se o recurso que interponho?


Se vida alegre, morte triste pede,

pedirá vida triste alegre morte?

Mas, se a lógica embrulha na sua rede,

ceiva está a realidade dessa sorte.


Teme, pois, que a tua morte a tua vida

reproduza num rosto mais esgrévio,

e seja a última vaza da partida,

funçom exacta do traçado prévio.


9


Ainda eu poderia ser feliz.

Um ano, um mês, um dia.

Se os males nom vinhessem todos juntos.

Se nom fossem tam solidários.

Se me batesse cada vez um só,

ou dous, ou três, ou catro, ou cinco, ou seis,

ainda enduraria, e aprenderia a vencê-los,

a esquecê-los, a ignorá-los. ·

Ainda poderia ser feliz.

Com este morno sol, este ar tranquilo,

estas nuvens ao pàiro, estas rosas bráncas,

este cabelo longo desta nena.

Umha felicidade

humilde, pobre, breve.

Mas suficiente. Ainda poderia

ser feliz, arrastando

umha infelicidade moderada.

Mas teriam que vir um, dous, três, catro,

cinco, seis males juntos nada mais.

A formiga carrega um peso limitado.

A mosca limpar pode as suas patas

um número de vezes reduzido,

se umha pinga de azeite lhas luxou.

Um tempo curto

poderia gozar de umha dita modesta,

se nom me carregassem tantos fardos no lombo,

se nom me travassem tantas pejas os nozelhos.

Ainda poderia,

se os males nom vinhessem todos juntos,

un ano, um mês, um dia ser feliz.



Ricardo Carvalho Calero in Cantigas de Amigo e Outros Poemas (1980-1985)

Ilustraçoms de Felipe Criado.

AGAL (Associaçom Galega da Língua), 1986.

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