Rabindranath Tagore
UM MOMENTO DE INDULGÊNCIA
Peço um momento de indulgência para me sentar ao teu lado. Os trabalhos
que tenho em mãos, irei terminá-los depois.
Longe da vista do teu rosto, o meu coração não conhece nem repouso nem pausa,
e o meu trabalho torna-se uma interminável labuta num mar ilimitado de labuta.
Hoje o verão chegou à minha janela com os seus suspiros e murmúrios;
e as abelhas plantam na corte do bosque a arte de seus menestréis.
Agora é hora de me sentar por inteiro, contigo face a face, e cantar
a dedicação à vida neste exuberante ócio silencioso.
O ÚLTIMO CONTRATO
"Vem e contrata-me", gritei, quando pela manhã caminhava na calçada de pedra da estrada.
Espada na mão, o Rei veio em sua carruagem.
Segurou a minha mão e disse: "Vou contratar-te com meu poder".
Mas o seu poder nada contava, e retirou-se em sua carruagem.
No calor do meio-dia, as casas permaneciam à porta fechada.
Vagueei pela viela tortuosa.
Um velho aproximou-se com a sua bolsa de ouro.
Ponderou e disse: "Vou contratar-te com o meu dinheiro".
Pesou uma a uma as suas moedas, mas recusei.
Era noite. A cerca do jardim estava toda em flor.
A leal camareira veio e disse: "Vou contratar-te com um sorriso".
O sorriso esmoreceu, derreteu-se em lágrimas, e foi-se sozinha na noite.
O sol brilhava na areia e as ondas do mar quebravam-se rebeldes.
Uma criança estava sentada a brincar com as conchas.
Ergueu a cabeça, pareceu conhecer-me, e disse: "Vou contratar-te com nada".
Doravante,
esse contrato celebrado num jogo infantil fez de mim
um
homem livre.
VOCAÇÃO
Quando o gongo soa as dez da manhã, caminho para a escola junto à nossa viela.
Todo o dia encontro o vendedor ambulante gritando, "Pulseiras de cristal,
pulseiras! "
Não há nada que o apresse, nenhuma estrada que deva
tomar, nenhum lugar onde deva ir, nem hora para
a casa regressar.
Gostaria
de ser um vendedor ambulante, passando o meu dia na
estrada,
gritando, "Pulseiras, pulseiras de cristal!"
Quando às quatro da tarde, regresso da escola,
posso ver através do portão de uma casa um jardineiro cavando
o chão.
Faz o que gosta com a sua pá, suja as suas roupas
com poeira, ninguém o impede de trabalhar se ficar tostado ao sol
ou molhado.
Gostaria de ser um jardineiro cavando o jardim sem
ninguém para me impedir de cavar.
Á noite, assim que escurece, e a minha mãe me manda para
a cama,
posso ver através da minha janela o guarda-nocturno
para cima e para baixo a caminhar.
A viela é escura e solitária, o candeeiro está de pé como
um gigante com um olho vermelho na cabeça.
O guarda-nocturno balouça a lanterna, caminha com a sombra
a seu lado, e nunca vai para a cama em sua vida.
Gostaria de ser um guarda-nocturno percorrendo toda a noite as ruas,
com a minha lanterna perseguindo as sombras.
FACE A FACE
Dia após dia, Ó senhor da minha vida,
ficarei diante de ti face a face.
Com as mãos cruzadas, Ó senhor de todos os mundos,
ficarei diante de ti face a face.
Sob o teu grande céu em solidão e silêncio,
com o coração humilde ficarei diante de ti face a face.
Neste teu laborioso mundo, tumultoso de labuta
e luta, entre multidões apressando-se
ficarei diante de ti face a face.
E quando neste mundo o meu trabalho tiver acabado,
Ó Rei dos reis, sozinho e sem palavras
ficarei diante de ti face a face.
O ASTRÓNOMO
Eu apenas disse, "Quando à noite a lua cheia fica enlaçada
entre as praias daquela árvore Dadam, será que alguém
podia apanhá-la?"
Mas o papá riu-se de mim e disse, "Bébé, tu és a criança mais
idiota que já conheci. A lua está tão longe de nós, como poderia
alguém apanhá-la?"
Eu disse, "Papá, como és tolo! Quando a mãe aparece à
sua janela e brincando nos sorri, dirias que ela está assim tão
longe?"
Mas o papá insistiu, "Tu é uma criança estúpida! Mas, bébé, onde
poderias encontrar uma rede suficientemente grande para apanhar a lua?"
Eu disse, "Certamente podes apanhá-la com as mãos."
Mas o papá riu-se e disse, "Tu és a criança mais idiota que conheci.
Se chegasses mais perto, verias o tamanho da lua."
Eu disse, "Papá, que disparates ensinam na tua escola! Quando
a mãe baixa o rosto para nos beijar, a sua face parece muito
grande?"
Mas o papá insistiu: "Tu és uma criança estúpida."
A ÚLTIMA CORTINA
Sei que chegará o dia
em que se perderá a minha visão desta terra,
a vida em silêncio se despedirá,
desenhando sobre os meus olhos a última cortina.
Apesar de tudo as
estrelas manterão na noite
a sua vigília,
a manhã levanta-se como era de antes,
as horas agitam-se
como ondas do mar fundindo
o prazer e a dor.
Quando penso no final dos meus momentos,
quebra-se a barreira dos momentos
e vejo através da luz da morte
o teu mundo com os seus tesouros descuidados.
Raro é o mais humilde dos lugares,
rara é a pior de todas as vidas.
As coisas que ansiava em vão
e as coisas que tenho
--- deixa-as passar.
Deixa-me na verdade possuir
tudo o que desprezei
e ignorei.
LIBERDADE
Libertação do medo é a liberdade
que reivindico para ti, minha pátria!
Livre do fardo das eras, que dobra a tua cabeça,
quebra as tuas costas, cega os teus olhos ao aceno
do futuro que apela;
Livre dos grilhões do sono com que
a ti mesma te prendes na quietude da noite, a suspeitar
da estrela que fala de ousadas trilhas da verdade;
livre da anarquia do destino,
onde velas inteiras se rendem fracas a cegos ventos incertos,
e ao leme de uma mão fria e rígida como a morte.
Livre do insulto de morar num mundo de marionetas,
onde os movimentos começam através de fios sem cérebro,
repetidos através de tolos hábitos,
onde pacientes figuras em obediência esperam pelo
mestre de cena,
para serem despertas para uma mímica da vida.
ONDE A MENTE É SEM MEDO
Onde a mente é sem medo e a cabeça alto se ergue
Onde o conhecimento é livre
Onde o mundo não foi dividido em fragmentos
Por estreitos muros domésticos
Onde as palavras saem da fundura da verdade
Onde o esforço
incansável estende os braços para
a perfeição
Onde o fluxo claro da razão não se perdeu
Na triste areia do deserto do hábito morto
Onde a mente é levada adiante por ti
Em pensamentos e acções cada vez maiores
Nesse céu de
liberdade, meu Pai, deixa
o meu país acordar.
A MARGEM LONGÍNQUA
Anseio por ir até à outra margem do rio.
Onde os barcos alinhados estão amarrados às varas de bambú;
Onde os homens atravessam os seus barcos de manhã com
arados nos ombros para lavrar campos distantes;
Onde os vaqueiros fazem o seu gado nadar baixo até à
pastagem ribeirinha;
De onde todos voltam para casa à noite, deixando o
chacais a uivar na ilha coberta de ervas daninhas.
Mãe, se não te importas, gostaria de ser o barqueiro
da balsa quando crescer.
Dizem que existem estranhos lagos escondidos atrás dessa
margem alta.
De onde vêm os bandos de patos selvagens quando as chuvas
acabam, e os juncos grossos crescem em volta das margens onde
as aves aquáticas põem os ovos;
Onde as narcejas com as suas caudas dançantes imprimem
as pequenas pegadas na lama limpa e macia;
Onde à noite as ervas altas cristadas de brancas flores
convidam o raio da lua a flutuar sobre as ondas.
Mãe, se não te importas, gostaria de ser o barqueiro
da balsa quando crescer.
Vou cruzar e regressar de margem em margem, e todos os
rapazes e raparigas da vila, ao banharem-se, vêm admirar-me.
Quando o sol nasce no meio do céu e a manhã passa o meio-dia,
irei a correr para ti, dizendo: "Mãe, tenho fome".
Quando o dia finda e as sombras se ocultam sob as árvores,
na poeira regressarei.
Nunca te abandonarei como o pai para trabalhar na cidade.
Mãe, se não te importas, gostaria de ser o barqueiro
da balsa quando crescer.
AUTORIA
Dizes que o pai
escreve muitos livros, mas não entendo o que
ele
escreve.
Esteve a ler para ti ao longo da noite,
mas compreendes
realmente o quer dizer?
Que belas histórias, mãe, podes contar-nos! Porque é que o pai
não pode escrever assim, pergunto?
Nunca terá ouvido da sua mãe histórias de gigantes e
fadas e princesas?
Terá esquecido todas?
Muitas vezes, quando se atrasa para o banho, tens cem vezes
de o chamar.
Esperas e conservas os seus pratos quentes, mas ele continua
a escrever e a esquecer.
O pai brinca sempre a fazer livros.
Se alguma vez vou brincar para o seu quarto, vens e chamas-me,
"Que criança atrevida!"
Se fizer o menor ruído, dizes: "Não vês que o pai
está a trabalhar?"
Qual a graça de escrever e escrever sempre?
Quando pego na caneta ou no lápis do pai e escrevo no seu livro
assim como ele faz, - a, b, c, d, e, f, g, h, i, - por que te irritas logo
comigo, mãe?
Nunca dizes uma palavra quando o pai escreve.
Quando o pai desperdiça montes de papel, mãe, parece que de
todo não te importas.
Mas se pegar numa única folha para desenhar um barco, dizes:
"Criança, como és desordeira!"
O que pensas das folhas que o pai estraga e das folhas de papel
com marcas pretas de ambos lados?
O MARINHEIRO
A barca do barqueiro Madhu está atracada no cais de Rajgunj.
Está inutilmente carregada de juta e jaz há muito tempo
ociosa.
Se me emprestasse a sua barca, deveria equipá-la com
cem remos e cinco, seis ou sete velas içadas.
Nunca deveria conduzi-la a estúpidos mercados.
Deveria navegar pelos sete mares e pelos treze rios do
país das fadas.
Mas, mãe, não vais chorar a um canto por mim.
Não vou para a floresta como Ramachandra para regressar
após catorze anos apenas.
Vou tornar-me o príncipe da história e a minha barca encher com
tudo o que quiser.
Vou levar o meu amigo Ashu comigo. Vamos alegremente navegar
através dos mares e dos treze rios do país das fadas.
Vamos zarpar à luz da manhã.
Quando ao meio-dia estiveres a banhar-te na lagoa, estaremos na
terra de um estranho rei.
Passaremos pelo vau de Tirpurni e deixaremos para trás o
deserto de Tepantar.
Quando regressarmos, estará escurecendo, e contar-te-ei
tudo o que vimos.
Atravessarei os sete mares e os treze rios do
país das fadas.
O PÀSSARO DOMÉSTICO
O pássaro doméstico estava numa gaiola, o pássaro livre estava na floresta.
Conheceram-se quando chegou a hora, era um decreto do destino.
O pássaro livre grita, "Ó meu amor, vamos voar para a floresta".
O pássaro da gaiola sussurra, "Vem para aqui, vamos viver na gaiola".
Diz o pássaro livre, "Entre as grades, onde há espaço para abrir as asas?"
"Ai", grita o pássaro enjaulado, "não saberia onde me sentar empoleirado no céu."
O pássaro livre grita, "Minha querida, canta as canções das florestas."
O pássaro da gaiola canta, "Senta-te ao meu lado, vou ensinar-te a linguagem dos cultos."
O pássaro da floresta grita, "Não, ah não! as canções nunca podem ser ensinadas.
O pássaro da gaiola diz, "Infelizmente para mim, desconheço as canções das florestas."
Tão intenso é o amor como o desejo, mas nunca poderão voar asa a asa.
Olham através das grades da gaiola, e vão é o seu desejo de se conhecerem.
Batem ansiosamente as asas e cantam, "Aproxima-te, meu amor!"
O pássaro livre grita, "Não pode ser, temo as portas fechadas da gaiola".
O pássaro da gaiola sussurra, "Ai, as minhas asas estão fracas e mortas".
Rabindranath Tagore
in 215 Poems, Classic Poetry Series, PoemHunter, The World's
Poetry Archive, 2012.
Versão Portuguesa de Luísa
Vinuesa.