Edgar Allan Poe

Annabel  Lee


Foi há muitos e muitos anos já,
Num reino de ao pé do mar.
Como sabeis todos, vivia lá
Aquela que eu soube amar;
E vivia sem outro pensamento
Que amar-me e eu a adorar.

Eu era criança e ela era criança,
Neste reino ao pé do mar;
Mas o nosso amor era mais que amor –
O meu e o dela a amar;
Um amor que os anjos do céu vieram
a ambos nós invejar.

E foi esta a razão por que, há muitos anos,
Neste reino ao pé do mar,
Um vento saiu duma nuvem, gelando
A linda que eu soube amar;
E o seu parente fidalgo veio
De longe a me a tirar,
Para a fechar num sepulcro
Neste reino ao pé do mar.

E os anjos, menos felizes no céu,
Ainda a nos invejar…
Sim, foi essa a razão (como sabem todos,
Neste reino ao pé do mar)
Que o vento saiu da nuvem de noite
Gelando e matando a que eu soube amar.

Mas o nosso amor era mais que o amor
De muitos mais velhos a amar,
De muitos de mais meditar,
E nem os anjos do céu lá em cima,
Nem demônios debaixo do mar
Poderão separar a minha alma da alma
Da linda que eu soube amar.

Porque os luares tristonhos só me trazem sonhos
Da linda que eu soube amar;
E as estrelas nos ares só me lembram olhares
Da linda que eu soube amar;
E assim ‘stou deitado toda a noite ao lado
Do meu anjo, meu anjo, meu sonho e meu fado,
No sepulcro ao pé do mar,
Ao pé do murmúrio do mar.



O Corvo


Numa meia-noite agreste, quando eu lia, lento e triste,
Vagos, curiosos tomos de ciências ancestrais,
E já quase adormecia, ouvi o que parecia
O som de algúem que batia levemente a meus umbrais.
“Uma visita”, eu me disse, “está batendo a meus umbrais.
É só isto, e nada mais.”

Ah, que bem disso me lembro! Era no frio dezembro,
E o fogo, morrendo negro, urdia sombras desiguais.
Como eu qu’ria a madrugada, toda a noite aos livros dada
P’ra esquecer (em vão!) a amada, hoje entre hostes celestiais –
Essa cujo nome sabem as hostes celestiais,
Mas sem nome aqui jamais!

Como, a tremer frio e frouxo, cada reposteiro roxo
Me incutia, urdia estranhos terrores nunca antes tais!
Mas, a mim mesmo infundido força, eu ia repetindo,
“É uma visita pedindo entrada aqui em meus umbrais;
Uma visita tardia pede entrada em meus umbrais.
É só isto, e nada mais”.

E, mais forte num instante, já nem tardo ou hesitante,
“Senhor”, eu disse, “ou senhora, decerto me desculpais;
Mas eu ia adormecendo, quando viestes batendo,
Tão levemente batendo, batendo por meus umbrais,
Que mal ouvi…” E abri largos, franqueando-os, meus umbrais.
Noite, noite e nada mais.

A treva enorme fitando, fiquei perdido receando,
Dúbio e tais sonhos sonhando que os ninguém sonhou iguais.
Mas a noite era infinita, a paz profunda e maldita,
E a única palavra dita foi um nome cheio de ais –
Eu o disse, o nome dela, e o eco disse aos meus ais.
Isso só e nada mais.

Para dentro então volvendo, toda a alma em mim ardendo,
Não tardou que ouvisse novo som batendo mais e mais.
“Por certo”, disse eu, “aquela bulha é na minha janela.
Vamos ver o que está nela, e o que são estes sinais.”
Meu coração se distraía pesquisando estes sinais.
“É o vento, e nada mais.”

Abri então a vidraça, e eis que, com muita negaça,
Entrou grave e nobre um corvo dos bons tempos ancestrais.
Não fez nenhum cumprimento, não parou nem um momento,
Mas com ar solene e lento pousou sobre os meus umbrais,
Num alvo busto de Atena que há por sobre meus umbrais,
Foi, pousou, e nada mais.

E esta ave estranha e escura fez sorrir minha amargura
Com o solene decoro de seus ares rituais.
“Tens o aspecto tosquiado”, disse eu, “mas de nobre e ousado,
Ó velho corvo emigrado lá das trevas infernais!
Dize-me qual o teu nome lá nas trevas infernais.”
Disse o corvo, “Nunca mais”.

Pasmei de ouvir este raro pássaro falar tão claro,
Inda que pouco sentido tivessem palavras tais.
Mas deve ser concedido que ninguém terá havido
Que uma ave tenha tido pousada nos meus umbrais,
Ave ou bicho sobre o busto que há por sobre seus umbrais,
Com o nome “Nunca mais”.

Mas o corvo, sobre o busto, nada mais dissera, augusto,
Que essa frase, qual se nela a alma lhe ficasse em ais.
Nem mais voz nem movimento fez, e eu, em meu pensamento
Perdido, murmurei lento, “Amigo, sonhos – mortais
Todos – todos já se foram. Amanhã também te vais”.
Disse o corvo, “Nunca mais”.

A alma súbito movida por frase tão bem cabida,
“Por certo”, disse eu, “são estas vozes usuais,
Aprendeu-as de algum dono, que a desgraça e o abandono
Seguiram até que o entono da alma se quebrou em ais,
E o bordão de desesp’rança de seu canto cheio de ais
Era este “Nunca mais”.

Mas, fazendo inda a ave escura sorrir a minha amargura,
Sentei-me defronte dela, do alvo busto e meus umbrais;
E, enterrado na cadeira, pensei de muita maneira
Que qu’ria esta ave agoureia dos maus tempos ancestrais,
Esta ave negra e agoureira dos maus tempos ancestrais,
Com aquele “Nunca mais”.

Comigo isto discorrendo, mas nem sílaba dizendo
À ave que na minha alma cravava os olhos fatais,
Isto e mais ia cismando, a cabeça reclinando
No veludo onde a luz punha vagas sobras desiguais,
Naquele veludo onde ela, entre as sobras desiguais,
Reclinar-se-á nunca mais!

Fez-se então o ar mais denso, como cheio dum incenso
Que anjos dessem, cujos leves passos soam musicais.
“Maldito!”, a mim disse, “deu-te Deus, por anjos concedeu-te
O esquecimento; valeu-te. Toma-o, esquece, com teus ais,
O nome da que não esqueces, e que faz esses teus ais!”
Disse o corvo, “Nunca mais”.

“Profeta”, disse eu, “profeta – ou demônio ou ave preta!
Fosse diabo ou tempestade quem te trouxe a meus umbrais,
A este luto e este degredo, a esta noite e este segredo,
A esta casa de ância e medo, dize a esta alma a quem atrais
Se há um bálsamo longínquo para esta alma a quem atrais!
Disse o corvo, “Nunca mais”.

“Profeta”, disse eu, “profeta – ou demônio ou ave preta!
Pelo Deus ante quem ambos somos fracos e mortais.
Dize a esta alma entristecida se no Éden de outra vida
Verá essa hoje perdida entre hostes celestiais,
Essa cujo nome sabem as hostes celestiais!”
Disse o corvo, “Nunca mais”.

“Que esse grito nos aparte, ave ou diabo!”, eu disse. “Parte!
Torna á noite e à tempestade! Torna às trevas infernais!
Não deixes pena que ateste a mentira que disseste!
Minha solidão me reste! Tira-te de meus umbrais!
Tira o vulto de meu peito e a sombra de meus umbrais!”
Disse o corvo, “Nunca mais”.

E o corvo, na noite infinda, está ainda, está ainda
No alvo busto de Atena que há por sobre os meus umbrais.
Seu olhar tem a medonha cor de um demônio que sonha,
E a luz lança-lhe a tristonha sombra no chão há mais e mais,
Libertar-se-á… nunca mais!



ULALUME


O céu era lívido e frio,
As folhas de um louro mortal,
As folhas de um seco mortal;
Era noite no outubro vazio
No fim do meu ano fatal;
Era ao pé desse lago sombrio
Na média região 'spectral -
Era perto do pego sombrio
Na fria floresta 'spectral.

Aqui, por uma álea titânica,
Cipréstea, errei com minha alma -
Cipréstea, com Psiquê, minha alma.
Eram dias de mente vulcânica
Como o rio que quente se espalma -
Como a lava que em rio se espalma,
Em fúria sulfúrea e vesânica
Nas últimas terras sem calma -
Que geme com mágoa vesânica
Nas terras extremas sem calma.

Cada um no falar fora frio,
Mas na alma de um gelo mortal -
Na alma dum dolo mortal,
Pois não demos p'lo outubro vazio
Nem p'la noite do ano fatal -
(Ah noite entre todas fatal!),
Nem notámos o lado sombrio
(Que outrora já viramos tal!),
Nem lembrámos o pego sombrio
Nem a fria floresta 'spectral.

Mas a noite era já senescente
E os astros sonhavam com dia -
E os astros mostravam o dia,
Quando um baço luzir liquescente
Ao fim do caminho surgia,
E da luz se formou um crescente
Que com pontas distintas luzia -
O de Astarte subido crescente
Com as pontas agudas luzia.

E eu disse, "Ela é a lua em verão,
Num éter de ardor a boiar;
Vai num éter de ardor a boiar.
Viu que as lágrimas não poderão
Nestas faces comidas secar,
E as estrelas passou do Leão
O caminho do céu a mostrar -
A paz que há nos céus a mostrar;
Veio aqui apesar do Leão
Nos trazer o amor no olhar -
Através da caverna do Leão
Com amor no seu lúcido olhar".
Mas Psiqué, erguendo seu dedo,
Disse, "Nada a esta estrela me dou -
A seu pálido ser me não dou.
Não tardeis! Não tardeis! Vinde cedo
Para longe, onde a alma está só".
Falou pálida e triste, e, com medo
Suas plumas roçaram no pó,
Tristemente roçaram no pó.

Respondi: "Isto é sonho somente.
Que nos guie esta trémula luz!
Que nos banhe esta nítida luz!
Seu sibílio 'splendor é fulgente
De beleza e 'speranças a flux -
Ah, no ar e na noite 'sta a flux!
Confiemos em sua luzente
Visão que nos certos conduz!
Poderemos confiar na luzente
Visão que nos certos conduz,
Que na noite e no ar 'sta a flux".

E a Psiqué eu afago e a beijo,
E a tiro da dor que a consume -
Da dúvida e da dor que a consume,
E no fim do caminho nos vejo
Que um sepulcro com porta resume...
Um sepulcro lendário resume.
Perguntei, "Que legenda é que vejo
Que esta lúgubre porta resume?"
E ela disse, "Ulalume! Ulalume!
'Sta aqui a tua amada Ulalume!"
E o meu ser ficou lívido e frio
Como as folhas de um louro mortal
E exclamei, "Era o outubro vazio,
esta noite do ano fatal,
Que aqui vim, aqui vim afinal,
Que aqui trouxe este fardo final!
Nesta noite de todas fatal
Que demónio me trouxe afinal?
Ah, conheço este lago sombrio,
Esta média região 'spectral!
Bem conheço este pego sombrio
E esta fria floresta 'spectral!"





Edgar Allan Poe traduzido por Fernando Pessoa in Obra Poética, 1983.
Seleção, Organização e Notas de Maria Aliete Galhoz.
Cronologia por João Gaspar Simões.
Introdução por Nelly Novaes Coelho.