Lawrence Ferlinghetti
Café Notre Dame
Uma espécie de trauma sexual
prende um casal abismado
Ele está segurando as duas mãos dela
nas suas
Ela está beijando as mãos dele
Estão olhando-se
nos olhos
de muito perto
Ela tem um casaco de peles
feito duma centena de coelhos correndo
Ele
tem um casaco clássico sombrio
e calças cinza-de-pardo
Agora estão a examinar as palmas
das mãos um do outro
como se fossem mapas de Paris
ou do mundo
como se estivessem à procura do Metrô
que os levasse juntos
através dos caminhos subterrâneos
através das «estações do desejo»
até ao terminal do amor
até às portas da cidade-luz
É um caso sem saída
e estão perdidos
nas linhas cruzadas
das suas palmas enlaçadas
suas linhas de cabeça e linhas de coração
suas linhas de sorte e linhas de vida
ilegíveis e misturadas
no mons veneris
da sua paixão
A boca da verdade
Será isto a boca da Verdade
no rosto desta mulher
atravessando a Piazza
«Bocca della Verita»
Onde se ergue a grande pedra redonda
no pórtico da igreja en Cosmedin
De seus pequenos pés
ela ultrapassa
o Templo das virgens
o Templo do falus
e a rua da misericórdia
Ela não se ajoelhou
em nenhuma igreja
Ela trota em tacões bem altos
tem óculos em cristal de rocha
e umas calças muito bem cortadas
Ela tem um belo rosto
estragado por rouge à lèvres
numa tentativa falhada
tudo salvo a Verdade
Ela podia ser a filha de um Shah
mas não o é
Ela é uma secretária
demorada no escritório
O patrão estava odioso
esta noite
sua boca deve ter respondido
seus lábios vermelhos poderiam bater
não importa qual língua
Ela é dura à sua maneira
mas nem tanto dura
Ela tem seus pontos fracos
seu lábio inferior
é muito delicado
podem ver-se outros pontos fracos
daí
Ela tem um cigarro aceso
na mão direita
a mesma mão que podia ter
metido na boca da Verdade
essa grande pedra pagã redonda
na boca da igreja
que vos morderá a mão
se vós escondereis uma mentira
Ela não meteu sua cabeça
na boca do leão
sua mão esquerda tem anéis
nos dedos errados
Este ano
Ela não tem namorado
mas tem seu cigarro
vê-se bem que é um amigo intimo
na maneira como ela o carícia
É um cigarro de filtro
Ela está impaciente
de se deitar Na cama
na obscuridade
com sua camisa
a janela aberta
lá fora uma árvore
de manhã um pássaro
Ela fuma seu cigarro
com a boca da Verdade
em volta do filtro
que filtrou tudo
salvo a Verdade
a Verdade passará
a Verdade sairá
a boca abrir-se-á
quando adormecer de costas
perto da janela aberta
perto da árvore
de folhas como lábios
O lábio inferior tão delicado
vai tremer
de sua garganta sairá um som profundo
a língua mensageiro mudo
com sua verdade sem palavras
A quem o dirá ela
em qual sonho
e qual «sombrio pombo
de língua vibrante»
passará debaixo do horizonte
de sua espera?
Fazendo amor em poesia
a partir de A. Breton
Numa guerra onde cada segundo conta
o Tempo cai no chão
como a sombra de uma árvore
debaixo da qual nós dormimos
num barco de madeira feito da árvore
por um carpinteiro desconhecido
além do mar
onde flutuam caroços de pêssegos
disparados por um artilheiro a cabo de
munições
com um canhão do qual a boca arranca
buracos em forma de coração
ao horizonte da nossa carne
moída de sol
muda de estupefação
entre o ato do sexo
e o ato da poesia
planeando no ar que escurece
no momento do amor e do júbilo
não há clarividência
sob a miséria do mundo.
Lawrence Ferlinghetti in A boca da verdade, Antologia Portuguesa, 1986
Tradução de André Shan Lima e Isabelle Lima.