Alexandre O'Neill

REDACÇÃO


Uma senhora pediu-me
um poema de amor.

Não de amor por ela,
mas de "de amor, de amor".

À parte aquelas
trivialidades
                  "minha rosa, lua,
                  do céu interior"
que podia eu dizer
para ela, a não destinatária,
que não fosse por ela?

Sem objecto, o poema
é uma redacção
dos 100 Modelos
de Cartas de Amor.



A CRIAÇÃO


Da folha de papel, amarfanhada,
a mosca sobe aos montes,
desce aos vales,
evola-se.

A mão, armada,
recomeça a planar
sobre outra folha, lisa,
de papel.



BREVE


Bom, diz ele,
dia!, diz ela.

Vamos?, diz ele,
Nada!, diz ela.

Então, diz ele,
adeus!, diz ela.



"NINGUÉM SE MEXA! MÃOS AO AR"


"Ninguém se mexa! Mãos ao ar!" disse o histérico
e frívolo homenzinho com mais medo
da arma que empunhava que de nós.
"Mãos ao ar!", repetiu para convencer-se.

Mas ninguèm se mexeu, como ele queria...
Deu-lhe então à maldade. Quase à toa,
escaqueirou o espelho biselado
que tinha as Boas-Festas da gerência

escritas a sabão. Todos baixámos,
medrosos a cabeça. Se era um louco,
melhor deixá-lo. (O barman escondera-se
por detrás do balcão). Ali estivemos

um ror de medo, até que o rabioso
virou a arma à boca e disparou.



A HISTÓRIA DA MORAL


Você tem-me cavalgado,
seu safado!
Você tem-me cavalgado,
mas nem por isso me pôs
a pensar como você.

Que uma coisa pensa o cavalo;
outra quem está a montá-lo.



MADE IN PORTUGAL


Peixe tão definido
na praia,
não relâmpago de prata:
folha de navalha

tirada da pança do mar,
do recesso que a alimentava,
lâmina boquiaberta,
áscua tresmalhada.

Peixe sem solução,
máquina a parar,
circular e vítrea aflição
a olhar.




POESIA-CÃO


Com que então, coração,
poesia-aflição!
Antes poesia-cão
que é melhor posição.

Já que não és capaz
dos efes e dos erres
dessa solerte mão
que é a que preferes,

meu tolo desidério,
talvez seja mais sério
não te tomares a sério:
reduz-te ao impropério.



AUTOCRÍTICA


Talento?
Tolentino?

Tolos!



Alexandre O'Neill in Poesias Completas, 2007.
Introdução de Miguel Tamen.