W. H. Auden


CAMINHADA APÓS ANOITECER


Uma noite sem nuvens como esta
Pode elevar o espírito;
Depois de um dia fatigante
O espectáculo do relógio 
Impressiona com algum tédio
Ao estilo do século Dezoito.

Tranquilizou a adolescência
A ter um olhar sem vergonha;
As coisas que fiz não poderiam
Ser tão chocantes quanto diziam
Se este ainda lá se encontrava
Após a morte de quem se chocava.

Agora, impreparado para morrer
Mas já vivendo essa época em
Que se começa a desgostar de jovens,
Estou feliz por esses pontos no céu
Poderem ser também contados entre
As criaturas de meia-idade.

É mais confortante pensar na noite
Como um Lar de Idosos e não 
Um armazém de impecáveis máquinas,
Que a luz vermelha pré-Cambriana
se foi como a Roma Imperial
Ou eu mesmo aos dezessete anos.

Ainda por mais que gostemos
Da estóica maneira com que
Os autores clássicos escreviam,
Só os jovens e os ricos homens 
Têm bravura ou presença para atacar
A nota lacrimae rerum.

Para o estrageiro o presente segue
Como o passado, de novo injustiçados
Vão choramingando e são ignorados,
E a verdade já não pode ser ocultada;
Alguém escolheu a sua dor,
O que não era para ser aconteceu.

Ocorrendo nessa mesma noite
Por nenhuma regra estabelecida,
Algum evento já pode ter lançado
O seu primeiro pequeno Não à direita
Das leis que aceitamos para a escola
No nosso mundo pós-diluviano:

Mas as estrelas abrasam em cima,
Inconscientes dos últimos fins,
Quando regresso a casa para dormir,
Interrogando que julgamento espera
A minha pessoa, os meus amigos,
E esses Estados Unidos.


ODE A TERMINUS


Os Sumo-Sacerdotes dos telescópios e ciclotrões
continuam ditando augúrios sobre eventos
      em escalas gigantescas ou anãs
      despercebidas de nossos nativos sentidos,

descobertas que, expressas em elegantes
eufemismos de álgebra, parecem inocentes,
      quase inofensivas, mas, quando traduzidas
      na antropomórfica e vulgar

linguagem, não serão motivo de hilaridade
para jardineiros ou donas de casa: se as galáxias
     dispararem como turbas em pânico, se mesões
     se amotinarem como peixes no frenesim da
comida,

tudo isso soa em demasia a História Política
para elevar a moral civil, demasiado simbólicos
      os crimes e greves e manifestações que nos
      devem alegrar com o café da manhã.

Quão banais, porém, os nossos medos ao lado do milagre
que estamos aqui para tremer, que qualquer Coisinha
      tão viciada em violência letal
deveria ter de algum modo secreto um plácido

trunfo exactamente com os ingredientes certos
para começar e amar a Vida, essa celestial
      aberração sobre cuja gestão teremos que
      prestar contas no Juízo Final, a nossa Terra-

Média, onde o Pai-Sol sobre todas as aparências
se move dia a dia de oriente a ocidente,
      e a sua luz é sentida como uma presença
      amiga não um bombardeamento fotónico,

onde todos os visíveis têm um esquema
definido que seguem, e sem dúvida, estão
     em repouso ou em movimento, onde os amantes
     se reconhecem um ao outro à superfície,

onde para todas as espécies, excepto as faladoras
receberam o nicho e a dieta que
     as moldaram. Isso, não importa o que a micro-
     biologia possa pensar, é o mundo em que

realmente vivemos, isso salva a nossa sanidade,
que sabe muito bem como a mente mais
     erudita no escuro se comporta, sem que o
     que a rodeia seja chamado a interpretar,

como, descartando ritmo, pontuação, metáfora,
mergulha num patético monólogo,
     demasiado literal para notar uma piada ou
     distinguir um pénis de um lápis.

Vénus e Marte são poderes ademais naturais
para temperar a nossa extravagante extravagância:
     Tu, sozinho, Terminus, o Mentor.
     podes ensinar-nos a alterar os nossos gestos.

Deus das paredes, portas e discrição, vingança
que alcança o sacrílego tecnocrata,
      Bendita é a Cidade que te agradece
      por nos dar jogos, gramática e métricas.

Pela graça de quem, cada reunião também
de dois ou três em amizade confiante
     repete a maravilha pentecostal, em que
     cada um tem no outro o seu certo tradutor.

Neste mundo que a nossa colossal imodéstia
saqueou e envenenou, é possível
     Que ainda nos possas salvar, a esses que
     aprenderam: que os cientistas, para serem
verdadeiros,

devem lembrar-nos de tomar tudo o que dizem como 
uma fraca história, que abominados nos Céus são todos
     os poetas auto-proclamados que, para impressionar
     o público, pronunciam alguma sonante mentira.


EPITÁFIO DE UM TIRANO


Perfeição, de certo modo, era o que buscava,
E a poesia que inventou era fácil de entender;
Conhecia a tolice humana como a palma de sua mão,
E estava muito interessado em exércitos e frotas;
Quando ria, respeitáveis senadores ​​rebentavam a rir,
E quando chorava, morriam criancinhas nas ruas.


HORAE CANONICAE


I. PRIMA


Simultaneamente, tão silenciosamente,

Espontaneamente, de súbito

Tal como, na ostentação do amanhecer,

Voam abertos os gentis portões do corpo

Para o seu mundo além, os portões da mente,

O portão de chifre e o portão de marfim

Balançam, fechados balançam, instantaneamente

Acalmam a sua busca nocturna

De sua fronde rebelde, mal-favorecida,

Mal-humorada e de segunda categoria,

Desprivilegiada, viúva e órfã

Por um erro histórico:

Lembrado das sombras para ser um ser vidente,

Da ausência para estar em exibição,

Sem nome ou história eu desperto

Entre o meu corpo e o dia.


Santo esse momento, totalmente certo,

Como, em completa obediência

Ao clamor lacónico da luz, próximo

Como um lençol, próximo como uma parede,

Lá fora como o equilíbrio de pedra de uma montanha,

O mundo está presente, ao redor,

E eu sei que estou, aqui, não sozinho

Mas com um mundo e regozijo

Despreocupado, pois a vontade ainda tem que reivindicar

Este braço adjacente como meu,

A memória para me nomear, retomar

A sua rotina de culpa e louvor

E sorrindo para mim é este instante quando

O dia ainda está intacto, e eu

O Adão sem pecado em nosso começo,

O Adão ainda anterior a qualquer acto.


Eu respiro; claro que isto é desejar

Não importa o quê, ser sábio,

Ser diferente, morrer e o custo,

Não importa como, é o Paraíso

Perdido, claro, e eu a dever uma morte:

A crista ansiosa, o mar estável,

Os telhados planos da vila dos pescadores

Ainda a dormir como coelhinhos enroscados,

Tão frescos e ensolarados embora não sejam ainda amigos

Mas coisas à mão, essa carne pronta

Nenhum igual honesto, mas meu cúmplice agora

Meu futuro assassino, e o meu nome

Representa a minha parcela histórica de zelo

Por uma cidade autodidacta e mentirosa,

O medo da nossa tarefa de viver, a morte

Que o dia vindouro demandará.


1949



II. TÉRCIA


Após apertar as patas do seu cão,

(cujo latido diria ao mundo que ele é sempre gentil,)

O carrasco parte rapidamente sobre a charneca;

Ele ainda não sabe quem será providenciado

Para fazer as altas obras da Justiça:

Fechando suavemente a porta do quarto da sua esposa,

(hoje ela tem uma das suas dores de cabeça)

Com um suspiro, o juiz desce a sua escada de mármore;

Ele não sabe por que sentença

Aplicará na terra a Lei que governa as estrelas:

E o poeta, tomando fôlego

Em seu jardim antes de começar a sua écloga,

Não sabe de quem é a Verdade que contará.


Espíritos da lareira e do depósito, deuses

De mistérios profissionais, os Grandes

Quem podem aniquilar uma cidade,

Não podem se incomodados neste momento: somos deixados,

Cada um a seu secreto culto, agora cada um de nós

Reza para uma imagem da sua imagem de si mesmo:

"Deixa-me passar por esse dia que se aproxima

Sem uma severa reprimenda de um superior,

Sem ser derrotado com uma réplica,

Ou me comportar como um idiota na frente das raparigas;

Deixa que algo emocionante aconteça,

Deixa-me encontrar uma moeda da sorte numa calçada.

Deixa-me ouvir uma nova história divertida."


Nesta hora, todos podemos ser qualquer um:

É apenas a nossa vítima que está sem um desejo

Que já sabe (é isso que

Nós nunca podemos perdoar. Se ele sabe as respostas,

Então porque estamos aqui, porque até mesmo aqui há pó?)

Já sabe que, de facto, as nossas preces são ouvidas,

Que nenhum de nós vai escorregar,

Que a maquinaria do nosso mundo funcionará

Sem problemas, que hoje, pela primeira vez,

Não haverá querelas no Monte Olimpo,

Nenhum murmúrio ctónico de inquietação,

Mas nenhum outro milagre, sabe que ao pôr do sol

Teremos tido uma boa Sexta-Feira.


Outubro de 1953



III. SEXTA


1


Não necessitas de ver o que alguém está a fazer

para saber se é a sua vocação,


Necessitas apenas de observar os seus olhos:

um cozinheiro misturando um molho, um cirurgião


fazendo uma incisão primária,

um funcionário preenchendo um papel de embarque,


usam a mesma expressão arrebatada,

esquecendo-se de si mesmos numa função.


Como é belo,

esse olhar do olho no objeto.


Ignorar as apetitosas deusas,

abandonar os formidáveis santuários


de Reia, Afrodite, Deméter, Diana,

rezar em vez disso a Santa Focas,


Santa Bárbara, São Saturnino,

ou quem quer que seja o patrono de alguém,


para que ninguém possa ser digno de seu mistério,

que acção prodigiosa a ser dada.


Deveria haver monumentos, deveria haver odes,

aos heróis sem nome que a tomaram primeiro,


ao primeiro lascador de sílex

que esqueceu o seu jantar,


ao primeiro colecionador de conchas

a permanecer celibatário.


Onde estaríamos se não fossm eles?

Ainda selvagens, sem treino doméstico, ainda


vagando pelas florestas sem

uma consoante para os nossos nomes,


escravos da Generosa Senhora, sem

qualquer noção de uma cidade


e, neste meio-dia, para esta morte,

não haveria executores.


2


Não necessitas de ouvir as ordens que são dadas

para saber se alguém tem autoridade,


Necessitas apenas de observar a sua boca:

quando um general sitiante vê


um muro de cidade aberto pelas suas tropas,

quando um bacteriologista


percebe num piscar de olhos o que estava errado

com a sua hipótese quando,


de uma olhada no júri, o promotor

sabe que o réu será enforcado,


os seus lábios e as linhas ao redor deles

relaxam, assumindo uma expressão


não de simples prazer em conseguir

o seu próprio jeito doce, mas de satisfação


em estar certo, uma encarnação

de Fortitudo, Justicia, Nous.


Podes não gostar muito deles

(Quem gosta?) mas devemos-lhes


basílicas, divas,

dicionários, versos pastorais,


as cortesias da cidade:

sem estas bocas judiciais


(que pertencem em grande parte

a grandes canalhas)


quão sórdida seria a existência,

amarrada por toda a vida a alguma vila de cabanas,


com medo da cobra local

ou do demónio local do vau


falando o dialecto local

de umas trezentas palavras


(pensa nas querelas de família e nas

cartas anónimas, pensa na endogamia)


neste meio-dia, não haveria autoridade

para ordenar esta morte.


3


Em qualquer lugar de que gostares, em algum lugar

na Terra de peito largo e vivificante,


em qualquer lugar entre as suas terras sedentas

e o Oceano intragável,


a multidão permanece perfeitamente imóvel,

os seus olhos (que parecem um) e as suas bocas


(que parecem infinitamente muitas)

inexpressivas, perfeitamente vazias.


A multidão não vê (o que todos veem)

uma luta de boxe, um desastre de combóio,


um navio de guerra sendo lançado,

não se interroga (como todos se interrogam)


quem vencerá, que bandeira será hasteada,

quantos serão queimados vivos,


nunca se distrai

(como toda a gente está sempre distraída)


por causa de um cão latindo, um cheiro de peixe,

um mosquito numa cabeça careca:


a multidão vê apenas uma coisa

(que somente a multidão pode ver)


uma epifania daquilo

que faz o que quer que seja feito.


Qualquer deus em que uma pessoa acredita,

de qualquer maneira e que ela acredita


(nenhum dos dois é exactamente igual)

como o único da multidão em que acredita


e acredita apenas naquilo

em que há apenas uma maneira de acreditar.


Poucas pessoas se aceitam e a maioria

nunca correctamente fará nada,


mas a multidão não rejeita ninguém, juntar-se à multidão

é a única coisa que todos os homens podem fazer.


Somente por isso podemos dizer

todos os homens são nossos irmãos,


superiores, por isso,

aos exoesqueletos sociais: Quando


até mesmo ignoraram as suas rainhas,

pararam de trabalhar por um segundo.


em suas cidades provinciais, para adorar

O Príncipe deste mundo igual a nós,


neste meio-dia, nesta colina,

no momento desta morte.


Primavera de 1954



IV. NONAS


O que sabemos ser impossível,
Embora repetidamente predito
Por eremitas selvagens, por xamã e sibilas
Balbuciando em seus transes,
Ou revelado a uma criança em alguma rima casual
Como desejar e matar, acontece
Antes que percebamos: ficamos surpreendidos
Com a facilidade e velocidade da nossa acção
E inquietos: Ainda são três horas,
Meio da tarde, mas o sangue
Do nosso sacrifício já está
Seco na relva; não estamos preparados
Para um silêncio tão repentino e tão breve;
O dia está muito quente, muito claro, muito calmo,
Sempre, os mortos permanecem como nada.
O que faremos até ao anoitecer?

O vento afrouxoue perdemos o nosso público.
Os muitos sem rosto que sempre
Se juntam quando qualquer mundo está para ser destruído,
Explodido, queimado, rachado,
Derrubado, serrado em dois, cortado, dilacerado,
Todos derreteram: nenhum
Nenhum daqueles que à sombra dos muros e das árvores
Jazem esparramado agora, dormindo calmamente,
Inofensivos como ovelhas, pode lembrar por que
Ele gritou ou o que
Tão alto sob o sol esta manhã;
Todos, se desafiados, responderiam
- “Era um monstro com um olho vermelho,
Uma multidão que o viu morrer, não eu.” -
O carrasco foi lavar-se, os soldados comer;
Ficamos sozinhos com nossa façanha.

A Madonna com o pica-pau verde,
A Madonna da figueira,
A Madonna ao lado da represa amarela,
Vira as suas caras gentis de nós
E os nossos projestos em construção,
Olhe apenas numa direcção,
Fixam o olhar em nosso trabalho concluído:
Bate-estacas, betoneira,
Guindaste e picareta esperam para serem de novo usados,
Mas como podemos repetir isso?
Sobrevivendo ao nosso acto, permanecemos onde estamos,
Tão desconsiderados quanto alguns
Artefatos nossos descartados
Como luvas rasgadas, chaleiras enferrujadas,
Ramais abandonados, gastos desequilibrados
Mós tortas e gastas enterradas em urtigas.

Esta carne mutilada, nossa vítima,
Explica muito abertamente, muito bem,
O feitiço do jardim de espargos,
O objectivo do nosso jogo de giz; selos,
Os ovos dos pássaros não são os mesmos, por trás da maravilha
De caminhos de reboque e pistas submersas,
Por trás do êxtase na escada em espiral,
Estaremos sempre agora conscientes
Do feito a eles que conduzem, sob
A perseguição e a captura simuladas,
As competições, lutas e respingos,
A respiração ofegante e o riso,
Esteja ouvindo o choro e a quietude
Para acompanhar de seguida : onde quer que
O sol brilhe, os riachos correm, os livros são escritos,
Aí também haverá esta morte.

Logo a tramontana fresca vai agitar as folhas,
As lojas reabrirão às quatro horas,
A camioneta azul vazia na rosada praça vazia
Enche-se e parte: temos tempo para
Deturpar, desculpar, negar,
Mitificar, usar este acontecimento
Enquanto, debaixo de uma cama de hotel, na prisão,
Em curvas erradas, o seu significado
Espera por nossas vidas: mais cedo do que escolheríamos
O pão derreterá, a água queimará,
E a grande repressão começa, Abadom
Montará a sua forca tripla
Em nossos sete portões, o gordo Belial fará
A nossas mulheres valsarem nuas; enquanto isso
Seria melhor ir para casa, se tivermos uma casa,
De qualquer forma, é bom descansar.

Que nossas vontades sonhadoras possam parecer escapar
Desta calma mortal, vaguear em vez disso
No fio das facas, nos quadrados pretos e brancos,
Através do musgo, baeta, veludo, tábuas,
Sobre rachaduras e colinas, em labirintos
De barbante e cones penitentes,
Descendo rampas de granito e passagens húmidas,
Através de portões que não se trancam
E portas marcadas como Privadas, perseguidas por mouros
E vigiado por ladrões latentes,
Para aldeias hostis nos cabeços dos fiordes,
Para castelos escuros onde o vento soluça
Nos pinheiros e os telefones tocam,
Convidando a problemas, para um quarto,
Iluminado por uma lâmpada fraca, onde está o nosso Duplo
Que escreve e não olha para cima.

Que, enquanto estivermos assim afastados, a nossa carne injustiçada
Possa funcionar sem ser perturbada, restaurando
A ordem que tentamos destruir, o ritmo
Que estragamos por despeito: válvulas fecham
E e abrem-se de modo exacto, glândulas segragam,
Vasos contraem e expandem-se
No momento certo, fluidos essenciais
Fluem para renovar células exaustas,
Sem saber exatamente o que aconteceu, mas impressionados
Pela morte como todas as criaturas
Agora observando este local, como o falcão olhando para baixo
Sem pestanejar, as galinhas presunçosas
Passando por perto em sua hierarquia,
O inseto cuja visão é impedida pela relva.
Ou o cervo que de longe timidamente
Espia pelas clareiras restas da floresta.


Julho de 1950


V. VÉSPERAS


Se a colina com vista para a nossa cidade foi sempre conhecida como o Túmulo de Adão, apenas ao anoitecer podes ver o gigante reclinado, a sua cabeça virada para o oeste, o seu braço direito descansando para sempre no quadril de Eva,


podes aprender, pela maneira como olha para o par escandaloso, o que um cidadão realmente pensa sobre a sua cidadania,


assim como podes ouvir agora no miado de um bêbado os seus rebeldes lamentos clamando por uma disciplina parental, em olhos lascivos percebendo uma alma desconsolada,


examinando com desespero todos os membros que passavam em busca algum vestígio do seu anjo sem rosto que nesse tempo em que desejar era uma ajuda nela montou uma vez e desapareceu:


Pois o Sol e a Lua fornecem as suas máscaras conformes, mas nesta hora de crepúsculo civil todos devem usar os seus próprios rostos.


E é agora que os nossos dois caminhos se cruzam.


Ambos reconhecem simultaneamente o seu Oposto: eu sou um Arcádio, ele é um Utópico.


Ele nota, com desprezo, a minha barriga de Aquário: eu noto, com alarme, a sua boca de Escorpião.


Ele gostaria de me ver limpando latrinas: eu gostaria de vê-lo removido para algum outro planeta.


Nenhum dos dois fala. Que experiência poderíamos partilhar?


Olhando para um abajur na vitrine de uma loja, observo que é demasiado horrível para qualquer um em plena consciência comprar: ele observa que é caro demais para um camponês comprar.


Ao passar por uma criança de bairro de lata com raquitismo, olho para o outro lado: ele olha para o outro lado se passa por uma gordinha.


Espero que os nossos senadores se comportem como santos, desde que não me reformem: Ele espera que se comportem como barítonos cattivi, e, quando as luzes se acenderem tarde na Cidadela,


Eu (que nunca vi o interior de uma esquadra de polícia) fico chocado e penso: "Se a cidade fosse tão livre quanto dizem, depois do pôr do sol todos os seus escritórios seriam enormes pedras negras":


Ele (que foi espancado várias vezes) não fica chocado, mas pensa: "Uma bela noite os nossos meninos trabalharão lá em cima."


Podes ver, então, porque, entre o meu Éden e sua Nova Jerusalém, nenhum tratado é negociável.


No meu Éden, uma pessoa que não gosta de Bellini tem as boas maneiras de não nascer: Em sua Nova Jerusalém, uma pessoa que não gosta de trabalhar ficará muito arrependida de ter nascido.


No meu Éden, temos algumas locomotivas a vapor, locomotivas de tanque de sela, rodas d'água ultrapassadas e outras belas peças de maquinaria obsoleta para brincar: em sua Nova Jerusalém, até mesmo os chefes serão donos de máquinas frias como pepinos.


No meu Éden, a nossa única fonte de notícias políticas é a bisbilhotice: em sua Nova Jerusalém, haverá um diário especial com grafia simplificada para tipos não verbais.


No meu Éden, cada um observa os seus rituais compulsivos e tabus supersticiosos, mas não temos moral: em sua Nova Jerusalém, os templos estarão vazios, mas todos praticarão as virtudes racionais.


Uma razão para o seu desprezo é que eu só tenho que fechar os meus olhos, atravessar a passarela de ferro para o caminho de reboque, apanhar a barcaça pelo curto túnel de tijolos e


lá estou eu no Éden novamente, recebido de volta por cromornos, peões duplicados, melancolias de alegres mineiros e um enorme pêndulo da Catedral (românica) de Santa Sofia (Die Kalte):


Uma razão para o meu alarme é que, quando ele fecha os olhos, ele entra, não em Nova Jerusalém, mas em algum dia augusto de ultraje quando travessuras infantis saltitam por salas de estar em ruínas e peixeiras intervêm na Câmara ou


alguma noite de outono de exclusões e execuções por afogamento quando os ladrões impenitentes (incluindo eu) são sequestrados e aqueles que ele odeia se odiarão a si mesmos.


Então, com um olhar passageiro, assumimos a postura do outro; já, os nossos passos recuam, indo, incorrigíveis cada um, em direcção ao seu tipo de refeição e noite.


Foi (como deve parecer a qualquer deus das encruzilhadas) simplesmente uma intersecção fortuita de caminhos de vida, leal a diferentes mentiras,


ou também um encontro entre cúmplices que, apesar de si mesmos, não conseguem resistir a se encontrar


para lembrar ao outro (ambos, no fundo, desejam a verdade?) aquela metade do seu segredo que ele mais gostaria de esquecer,


forçando-nos, aos dois, por uma fracção de segundo, a lembrar a nossa vítima (mas para ele eu poderia esquecer o sangue, mas para mim ele poderia esquecer a inocência)


em cuja imolação (chame-o Abel, Remo, quem quiseres, é uma Oferenda pelo Pecado) arcádias, utopias, a nossa querida e velha bolsa de democracia, igualmente fundadas:


Pois sem um cimento de sangue (deve ser humano, deve ser inocente) nenhuma parede secular permanecerá em segurança.


Junho de 1954



VI. COMPLETAS


Agora, como o desejo e as coisas desejadas

Deixam de exigir atenção,

Como, aproveitando a oportunidade, o corpo escapa,

Secção por secção, para se juntar

Às plantas em sua casta paz que é mais

A seu gosto real, agora que um dia é o seu passado,

O seu último acto e sentimento, deve vir

O instante da lembrança

Quando a coisa toda faz sentido: vem, mas tudo

Que eu lembro são portas que batem,

Duas donas de casa a discutir, um velho comendo avidamente,

Um olhar selvagem de inveja de uma criança,

Acções, palavras, que poderiam constar em qualquer conto,

E eu não consigo ver nem o enredo

Nem o significado; não consigo lembrar

Uma coisa entre o meio-dia e as três.


Nada está comigo agora, exceto um som,

O ritmo de um coração, uma sensação de estrelas

Caminhando vagarosamente, e ambos

Falam uma linguagem de movimento

Que posso medir, mas não ler: talvez

O meu coração esteja a confessar a sua parte

No que aconteceu conosco do meio-dia às três,

Que as constelações de facto

Cantam com alguma hilaridade além

De todo o gosto e acontecimento,

Mas, sabendo que não sei o que eles sabem

Nem o que eu deveria saber, desprezando

Todas as vãs fornicações da fantasia,

Agora deixem-me, abençoando os dois

Pela doçura de suas degradações

Aceitar a nossas separações.


Um passo a partir de agora me levará ao sonho,

Deixar-me-à, sem um estatuto,

Entre as suas tribos sujas de desejos

Que não têm danças nem piadas

Mas um culto mágico para propiciar

O que acontece do meio-dia às três,

Ritos estranhos que escondem de mim – se arriscar,

Dizer, sobre jovens num bosque de carvalhos

Insultando um veado branco, subornos nem ameaças

Farão com que eles se chibem - e então

A mentira passada é um passo para o nada,

Para o fim, para mim como para as cidades,

É a ausência total: o que vem a ser

Deve voltar ao não-ser

Por causa da equidade, do ritmo

Além da medida ou compreensão.


Podem poetas (podem homens na televisão)

Ser salvos? Não é fácil

Acreditar em justiça incognoscível

Ou rezar em nome de um amor

Cujo nome se esqueceu: libera

Me, libera C (querido C)

E todos os pobres coitados que nunca

Fazem correctamente nada, poupa-nos

No dia mais jovem quando todos estão

Agitadamente acordados, factos são factos,

(E saberei exatamente o que aconteceu

Hoje entre o meio-dia e as três)

Para que possamos também ir ao piquenique

Sem nada a esconder, juntarmo-nos à dança

Enquanto se move em pericorese,

Circulando à volta da perene árvore.


Primavera de 1954



VII. LAUDES


Entre as folhas, os pequenos pássaros cantam;

O canto do galo comanda o despertar:

Na solidão, por companhia.


Brilha o sol radiante sobre as mortais criaturas;

Os homens tornam-se sensíveis aos seus vizinhos:

Na solidão, por companhia.


O canto do galo comanda o despertar;

Repica já o sino da missa:

Na solidão, por companhia.


Os homens tornam-se sensíveis aos seus vizinhos;

Deus abençoe o Reino, Deus abençoe o Povo:

Na solidão, por companhia.


Repica já o sino da missa;

De novo a roda do moinho gotejante gira:

Na solidão, por companhia.


Deus abençoe o Reino, Deus abençoe o Povo;

Deus abençoe este mundo verde temporal:

Na solidão, por companhia.


De novo a roda do moinho gotejante gira;

Entre as folhas, os pequenos pássaros cantam:

Na solidão, por companhia.


1952



W. H. Auden in Selected Poems, New Version, Edward Mendelsen, Vintage Books, Random House, 1979.
Versão Portuguesa de Luísa Vinuesa.

Outros poemas

Cave canem

Tango

Papéis soltos

Fim de linha

Pélago da terra

Pendulum

Os alquimistas